Escrito em um cenário de expansão da globalização, a questão de fundo que dá sentido ao argumento do martinicano é a defesa de uma “diversidade cultural” em meio à padronização voraz imposta pelo capitalismo ocidental contemporâneo.
A crioulização é a mestiçagem acrescida de uma mais-valia que é a imprevisibilidade. Édouard Glissant,Introdução a uma poética da diversidade
Entre os séculos XVI e XIX, as Américas foram povoadas por invasores europeus que se estabeleceram em busca de riquezas, matérias-primas e mercados consumidores. Os povos que lá viviam tiveram suas constituições culturais solapadas pela lógica da voracidade capitalista mercantil, que atravessou as florestas e os rios excitada pelo novo fetiche do lucro e da reprodução de riquezas. Com a Martinica, ilha situada no mar do Caribe, não foi diferente: tomada por volta de 1635, constituiu-se, até hoje, como um departamento ultramarino francês no mar Atlântico.
Como não poderia deixar de ser, a Martinica foi alvo da ação criminosa de traficantes de negros escravizados ao longo de todo o processo colonial. Região produtora de cana-de-açúcar, café, rum e cacau, viu-se inundada pela diáspora africana forçada, que servia de braço produtivo nas grandes lavouras da produção agrícola voltada para o mercado externo, especialmente para o abastecimento de sua metrópole, a França. Ainda hoje sob o signo da exploração, permanece uma região extremamente pobre, com altos índices de desemprego, baixa produtividade econômica e extrema desigualdade social.
Mas foi dessa mesma Martinica que emergiu um grupo extremamente importante de “intelectuais caribenhos”. Lá nasceram figuras como Frantz Fanon e Aimée Cesaire, por exemplo, figuras centrais nos movimentos de negritude e de crítica à colonialidade. E foi de lá também que saiu Édouard Glissant, figura que, assim como Pedro Henríquez Ureña, foi praticamente esquecida no cenário acadêmico e intelectual brasileiro. Em comum entre eles o fato de que refletiram fortemente sobre o impacto não somente econômico, mas político e intelectual que a colonialidade, com seus dispositivos de dominação, ordenação e apagamento, teve sobre os territórios americano ou africano ao longo da emergência da “modernidade” europeia.
Glissant nasceu em 1928. Escritor, poeta, filósofo, romancista e ensaísta, construiu parte de sua vida intelectual na França. Doutorou-se em Letras e estudou etnografia no Museu do Homem de Paris e História e Filosofia na Sorbonne. Em seu retorno à Martinica, em 1965, fundou o Institut martiniquais d’études e o Acoma, publicação da área de ciências sociais. Entre 1988 e 1993, foi professor da Universidade da Louisiana, ligado ao Departamento de Estudos Franceses e Francófonos. A partir de 1995, foi professor de francês no The Graduate School and University Center of the City University of New York. Em janeiro de 2006, foi convidado pelo presidente francês, Jacques Chirac, a dirigir a missão de criação de um centro nacional dedicado à memória do tráfico e da escravidão martinicanas, o Institut du tout-monde. É autor de ensaios como Le Discours antillais (1981), Poétique de la Relation (1990), Traité du Tout-Monde (1997), La Cohée du Lamentin (2005), Mémoires des esclavages (2007) e Philosophie de la Relation (2009).
Em uma de suas poucas obras traduzidas ao português, Introdução a uma poética da diversidade, publicado pela primeira vez em 1995, pela editora Presses de l’Université de Montreal, são reunidas algumas conferências de Glissant nas quais se discutem aspectos importantes da identidade e do encontro de culturas no espaço das Américas. Escrito em um cenário de expansão da globalização, a questão de fundo que dá sentido ao argumento do martinicano é a defesa de uma “diversidade cultural” em meio à padronização voraz imposta pelo capitalismo ocidental contemporâneo.
Interessa-nos mais, nesse sentido, o primeiro texto, Crioulizações no caribe e nas Américas, uma verdadeira pérola ainda a ser lapidada. O argumento central do ensaio se desdobra a partir da acepção inicial de que existe uma unidade-diversidade fruto das relações entre o Caribe e as Américas. É preciso se deter, ainda que momentaneamente, na justificativa dada por Glissant para utilizar-se do plural “as” para falar do continente americano. Para ele, existem três Américas: a dos povos autóctones ou povos-testemunhas, chamada Meso-América; a daqueles que chegaram provenientes da Europa e que buscaram fundamentalmente preservar seus costumes e tradições no “novo mundo”, a Euro-América; e a que foi palco da “crioulização”, ligada ao tráfico de negros escravizados africanos que se estabeleceram, sobretudo, em regiões do sul dos Estados Unidos, no Caribe e no litoral brasileiro, a Neo-América. Essa divisão, porém, não comporta fronteiras rígidas, uma vez que a tônica central da formação americana foram os contatos, as trocas, os choques e as disputas.
O local por excelência dessas relações, segundo o martinicano, é o Atlântico, em especial o mar caribenho, espaço de abertura e difratação que comporta não apenas dinâmicas de trânsito e passagem, mas também uma ampla diversidade de contatos e suas infindáveis implicações. À luz dessa efervescência da diversidade é que, nos últimos três séculos, essa região presenciou um encontro de elementos culturais vindos de horizontes absolutamente diversos, dando vida a um processo que, segundo ele, é o de crioulização – imbricação e confusão em que um e outro se conectam e dão origem a algo absolutamente imprevisível, absolutamente novo: a realidade crioula.
A brilhante exposição glissantiana comporta ainda uma comparação entre o caribe atlântico e o mediterrâneo europeu. Para ele, o espaço de navegação “velho mundista” é um mar que concentra. Prova disso seria o nascimento das grandes religiões monoteístas à beira do Mediterrâneo graças à força que a cultura ocidental tem de predispor ao pensamento do Uno os homens que dela compartilham. Enrijecendo e apagando o múltiplo e o diverso, desde o início da modernidade até o contexto contemporâneo a tônica desse desejo epicêntrico europeísta tem a ver, invariavelmente, com a excitação pela unidade e pela estandardização.
Mais interessante ainda é o que o martinicano defende como hipótese final: a ideia de que o mundo estaria prestes (ou deveria estar) a se crioulizar. As culturas do mundo colocadas em contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente avassaladora tendem a se transformar, segundo ele, em grandes permutas através de choques, diálogos e guerras. Poderia ser, portanto, o momento de abandono de certo “espírito humanista” renascentista e iluminista, que colocou em cena uma obstinação pela formação de uma identidade pautada na ideia de exclusão (ou transformação) do diferente. Essa nova crioulização supõe que os elementos culturais colocados em presença uns dos outros devem partir de um princípio de “equivalência de valor”. Dito de outra forma, é preciso que a crioulização reivindique uma “intervalorização” entre os elementos heterógenos que, colocados em relação, não devem ser degradados, diminuídos ou soterrados.
Como na epígrafe inicial, o novo humanismo da crioulização é mais do que a simples mestiçagem, processo que tende, às vezes, à previsibilidade, à projeção matemática, à política pública e ao planejamento – e, no limite, à homogeneização. À crioulização acrescenta-se a imprevisibilidade que pode levar à diversidade e à pluralidade.
Nesse sentido, os escritos de Glissant, se devidamente resgatados e analisados à luz das demandas contemporâneas, podem servir de norte ético-político à atuação no espaço público em um momento de intensificação dos conflitos ao redor do mundo. Ao que parece, pode oferecer respostas importantes às dinâmicas atuais, pautando a necessidade de maior abertura à multiplicidade. Mais uma vez, a tradição intelectual latino-americana tem muito a oferecer ao conjunto das civilizações.
Cairo Barbosa