A resistência pacífica dos indígenas protectores da água contra o oleoduto Dakota Access em Standing Rock, inspirou um movimento de “activismo sagrado”, enraizando a acção política na ligação espiritual. O activismo sagrado é uma verdadeira fonte de esperança num mundo em colapso, pois oferece os fundamentos espirituais necessários para unir pessoas do mundo inteiro em torno de uma visão comum para a mudança de paradigma.
Por Martin Winiecki
Abandonar o Culto da Morte
A humanidade encontra-se no apogeu de um culto da morte, que tem encenado ao longo da História. No final do ano passado, mais de 15.000 cientistas, de 184 países diferentes, emitiram um “aviso à humanidade” sobre a perda de biodiversidade resultante do consumo excessivo de recursos. Estes sublinham que se mantivermos o rumo, em breve será demasiado tarde para corrigir a trajectória apocalíptica em que nos encontramos; o colapso global dos ecossistemas será inevitável.
Na sua compulsão por crescimento eterno, o capitalismo desenvolveu um mecanismo vampírico de proporções planetárias, sugando o sangue vital do corpo terrestre. Adicionalmente à indústria mineira e petrolífera, à desflorestação, à exploração de milhares de milhões de vidas e à escravidão mental da humanidade, o actual sistema económico global incorpora precisamente o Wetiko, um termo Algonquino que significa “canibalismo” e que ilustra a insanidade de que ficámos reféns. Wetiko é a “doença psico-espiritual do homem ocidental” que faz de nós amnésicos – o sentido natural de interdependência com outros seres é obliterado e substituído pelo vício do lucro pessoal a curto-prazo.
Após um período histórico de colonização, genocídio e imperialismo, a doença Wetiko infectou gradualmente (quase) toda a humanidade, manipulando-a para uma mundivisão que proclama que “a Terra é um recurso inerte, passível de ser explorado”, “animais e plantas não possuem espírito”, “a vida é um ringue de competição e combate”, “o amor termina sempre em desastre”, “ou acabamos com os nossos inimigos, ou eles acabam connosco”, “seremos castigados pelos nossos erros”, etc. Sob o feitiço deste condicionamento subconsciente, caminhamos sonâmbulos para o abismo, desprovidos da capacidade psicológica e espiritual necessária para encontrar uma base de entendimento e responder à crise que enfrentamos. Com a nossa sobrevivência colectiva em risco, precisamos de uma visão completamente diferente de nós próprios e da nossa relação com o mundo vivo, capaz de despertar o nosso amor primordial pela vida e o nosso desejo de a servir sem reservas. Apenas com uma narrativa unificadora, que aborde a desconexão humana na raiz da crise global, poderão os diversos movimentos sociais, políticos e ecológicos convergir numa força relevante pela mudança global de paradigma.
As Sementes de Standing Rock
O que é sagrado? Pode parecer cínico falar sobre algo “sagrado”, após milhares de anos de atrocidades cometidas em seu nome. Contudo, numa civilização que profanou e desproveu o mundo de significado, processando-o em bens de consumo, a nossa saudade pelo sagrado poderá ser, apesar de tudo, o que nos guiará para fora deste beco sem saída.
Quando os cerca de 30 membros da Tribo Sioux em Standing Rock confrontaram a indústria petrolífera e o governo dos Estados Unidos, montando acampamento no seu cemitério, que tinha sido então demolido para a construção do oleoduto Dakota Access, fizeram-no para “defender o sagrado”. Ladonna Bravebull Allard, fundadora do acampamento Sacred Stone, afirma “Erguemo-nos porque não tínhamos escolha. Água é vida. Se não houver água, morremos.”
Tal “activismo sagrado” surge como um relembrar profundo: Nós somos parte desta Terra. Não existe salvação fora dela. As religiões patriarcais proclamavam uma entidade exterior à Terra, que pactuava com pessoas excepcionais e pedia de nós a renúncia ao mundo. Contudo o pacto original de todo o ser humano é com a Terra e consequentemente, de natureza terrena e sensorial. O activismo não se torna “sagrado” apenas por actuar em nome de algo sagrado; mas por reconhecer, honrar, incorporar e celebrar a sacralidade inerente a tudo o que vive – que não se encontra para além deste mundo, mas aqui mesmo. O activismo sagrado desafia-nos a fazer uma escolha a cada momento, a decidirmo-nos pela vida, pela solidariedade e pela confiança, apesar da tentação de todo um esmagador condicionamento de medo, ódio e avidez. Foi esta orientação clara que alimentou a resistência em Standing Rock – e atraiu pessoas de origem tão diversa. Representantes de 300 culturas indígenas, anarquistas Black Block, ambientalistas, indivíduos na sua busca espiritual e mais de 2500 veteranos do exército, unidos para lá das suas divergências ideológicas, por algo mais fundamental que as suas ideologias – um centro espiritual comum.
Standing Rock inspirou outras resistências semelhantes ao nível global. O Chefe Arvol Looking Horse, líder espiritual do povo Lakota, Dakota e Nakota, escreve em Fevereiro de 2018, “Em todo o mundo, as pessoas despertam para a compreensão de que a água é um espírito vivo: ela cura quando oramos com ela, e morre quando a desrespeitamos. (…) Standing Rock marcou o início de um movimento internacional que continuará a trabalhar de forma pacífica, incansavelmente e pleno de propósito, pela protecção da água nas proximidades de todos os oleodutos poluentes espalhados pela Mãe Terra.”
Globalmente, surgem movimentos que caminham para a descentralização do poder, da cultura e das economias, abandonando os mega-sistemas dos estados-nação e das multinacionais neles entrelaçadas, construindo uma sociedade baseada em regiões autónomas nas quais as pessoas possam recuperar a sua soberania, cuidando uns dos outros e da Terra. Existem movimentos notáveis no Hemisfério Sul, tais como o movimento indígena Zapatista no México, a revolução Rojava nas áreas Curdas do norte da Síria, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Brasil, comunidades de paz, tal como em San José de Apartadó na Colômbia, e muitos outros. No Hemisfério Norte, vemos o renascimento de ideais socialistas e o aparecimento do municipalismo, como por exemplo em Barcelona en Comú.
É de notar que esta revolução é feminina na sua essência. São as mulheres que estão no coração de muitos destes movimentos. De Rojava a Chiapas, de Standing Rock a Barcelona, vemos o reaparecimento do poder feminino que nutre o sentido de comunidade, auto-determinação, cura e cuidado pela Terra, abanando as fundações do domínio patriarcal.
Como poderá este impulso revolucionário triunfar? Trump derrotou o movimento Standing Rock, Erdogan esmaga o povo de Rojava, as comunidades de paz Colombianas encontram-se gravemente ameaçadas por paramilitares. Na luta contra um sistema económico, político e militar, globalizado e multi-milionário, cada grupo e local em resistência encontrará o mesmo destino enquanto actuar apenas ao nível local, regional ou até mesmo nacional. A vitória sobre a globalização capitalista pode, logicamente, ser apenas global. Por outras palavras, ou formamos uma aliança global inquebrável, ou estamos destinados a falhar. Contudo, nesta disputa, o falhanço não é opção.
Ponto de Partida para uma Aliança Global?
Do meu ponto de vista, uma aliança global capaz de unir os diversos movimentos do Norte e do Sul, mobilizando os vários milhões que anseiam por mudanças radicais, poderia emergir em torno das cinco seguintes áreas temáticas:
1) Resistência pacífica e determinada contra a indústria petrolífera
Parar a indústria petrolífera antes que seja tarde demais, é a primeira exigência pela nossa sobrevivência colectiva. Tal como as pessoas se uniram para impedir a construção do oleoduto em Standing Rock, elas têm agora de se unir e resistir, onde quer que se encontrem, para impedir novos projectos de combustíveis fósseis e terminar com os existentes. Simultaneamente, é necessário aumentar a pressão nos municípios, países, empresas e bancos, para desinvestir em combustíveis fósseis e terminar com os seus subsídios. O movimento de desinvestimento alcançou um marco histórico nos primeiros dias de 2018, quando o presidente da câmara de Nova Iorque, Bill de Blasio, anunciou que a sua cidade iria desinvestir dos combustíveis fósseis e processar as grandes empresas petrolíferas pelas alterações climáticas. Naomi Klein, activista e autora, que assistiu às declarações, comenta “aquilo que ontem parecia politicamente impossível, parece de súbito possível.”
2) Transição para fontes limpas e descentralizadas de energia, e regeneração dos ecossistemas em grande escala.
Precisamos de estabelecer sistemas de energia regenerativos, baseados nas fontes inesgotáveis do sol e do vento. É preciso assegurar que a transição seja descentralizada, em vez de ficarmos presos em estruturas corporativas. Organizemo-nos para criar uma infraestrutura descentralizada para cidades e regiões com autonomia energética.
Adicionalmente, reabilitemos globalmente os ecossistemas, sendo que a desertificação, a seca, os fogos florestais e a miséria não resultam apenas das emissões de carbono, mas também da destruição dos ecossistemas e dos ciclos hidrológicos naturais. Ao criar sistemas para a retenção local da água da chuva, não precisamos de nos remeter à adaptação às alterações climáticas, podendo de facto restaurar e reequilibrar o clima destabilizado.
Existem exemplos muito fortes a seguir, tal como o “Gandhi da Água” Indiano, Rajendra Singh e a sua ONG Tarun Bharat Sangh que mobilizou os habitantes do Rajastão na recuperação de milhares de quilómetros quadrados de terra degradada, revitalizando posteriormente diversos rios, reequilibrando os níveis de pluviosidade, acabando com episódios climatéricos extremos, e assegurando um abastecimento constante de água e alimentos para cerca de 100.000 pessoas em menos de 25 anos. Seguindo um Novo Paradigma Hidrológico, organizemo-nos em comunidades unidas em torno das suas respectivas bacias hidrográficas, em nome da gestão natural e descentralizada da água, onde quer que estejamos. “Rain for Climate,” (Chuva pelo Clima) é um movimento iniciado pelo hidrólogo eslovaco Michal Kravčík, que oferece um plano global de acção semelhante.
3) Ética de Solidariedade Universal
De forma a curar verdadeiramente este planeta, precisamos do poder da comunidade, que é muito mais que uma simples coligação política. Onde quer que as pessoas se juntem sob um objectivo comum e pratiquem solidariedade, elas ligam-se com uma força maior que a soma dos seus esforços individuais. Assim, unem-se e regem-se por um propósito, confiança e possibilidade, capaz de superar qualquer obstáculo.
Temos de reconhecer o papel crucial da comunidade, não apenas como um efeito secundário e acidental de acampamentos ou ocupações, mas como um aspecto vital de uma sociedade pós-capitalista, que exige o nosso envolvimento consciente na sua construção e manutenção. Assim, a política torna-se uma questão de design social, porque as divisões de que somos vítimas nos nossos movimentos resultam, na maioria das vezes, de uma falta de confiança e solidariedade entre seres humanos. Todos transportamos uma ferida que se expressa como medo ou raiva, ataque ou retirada, numa ou noutra situação. Até hoje, a força desta ferida tem sido maior que a vontade de mudança. Os sistemas de dominação prevaleceram ao explorar esta fraqueza humana, semeando discórdia entre activistas e colocando-os em oposição.
Uma comunidade planetária de activismo sagrado sustenta-se na confiança que vive entre os seus membros. Ela crescerá em força na medida em que cultivar a solidariedade universal, a comunicação verdadeira e o apoio mútuo. Ao invés de propagar o moralismo heróico, criemos locais de encontro e novas formas de coexistência que nos permitam curar as feridas e reconstruir confiança.
4) Foco comum numa visão que emerge para a humanidade
O mundo parece estar pronto para uma mudança radical. A maioria da população no Ocidente deixou de apoiar o sistema político e económico dominante, e afasta-se dele naquilo que o jornalista Chris Hedges denomina “revolução invisível”. Nos últimos anos assistimos a fortes manifestações da fúria pública e do anseio por uma sociedade diferente. Contudo, pouco mudou. De acordo com o documentarista Adam Curtis, estamos encalhados num estado que a maioria consideraria insano, apenas porque ninguém perspectiva uma alternativa credível.
A mudança global necessária começa por imaginar de raíz a nossa civilização. Se transportamos uma visão autêntica para uma forma de vida não-violenta e regenerativa, uma cultura de solidariedade e confiança, seremos capazes de fazer nascer a transição global. Isto não é nada que possamos inventar; uma verdadeira visão é algo fundamentalmente diferente de uma ideia construída, de uma fantasia sonhadora, ou de uma ideologia. À medida que abandonamos a mentalidade mainstream da cultura dominante, superamos também a escassez de criatividade que bloqueia as pessoas de imaginar uma alternativa. Reconhecemos que o nosso espírito é profundamente criativo e que transportamos sempre uma visão – é por isso que estamos vivos. Quando uma visão toca o nosso coração e lhe permitimos que guie a nossa vida, somos guiados pelo nosso propósito mais profundo e temos toda a energia à nossa disposição. Contudo, não existe apenas visão ao nível individual, mas também ao nível colectivo. Como Ladonna Bravebull Allard de Standing Rock afirma, “Existe uma visão comum para a humanidade, quer a reconheçamos ou não.” A nossa tarefa é tornarmo-nos receptivos a ela, percepcionando-a, tornando-a visível e activada, utilizando todos os meios de comunicação, para que a imaginação colectiva não seja apenas alimentada por cenários de declínio, mas pela possibilidade elevada de cura e unificação global.
5) Uma lógica diferente de poder
A luta entre o capitalismo e os que defendem a vida é um teste de forças. Precisamos de acumular poder, mas um tipo de poder diferente daquele habitualmente utilizado por revolucionários. Não temos hipótese se procurarmos vencer um sistema globalizado de violência, construindo uma oposição baseada na mobilização de massas e focada na resistência. Muitas das tentativas de derrubar sistemas dominantes não surgiram da força mas da sensação de impotência, pois os activistas deixaram-se corromper pelo medo e a ira que esses sistemas propagavam.
A activista índia norte-americana Winona LaDuke escreve, “Parte da mitologia que nos têm ensinado é que não temos poder. Poder não é força bruta e dinheiro; poder encontra-se no teu espírito, na tua alma (…), na Terra, na tua relação com a Terra.”
Apesar de todas as feridas, toda a vida caminha automaticamente para a cura, regeneração e convergência, pois tal é necessário para a sua continuidade. Na natureza, encontramos a presença de padrões universais que operam de acordo com o que o sociólogo e visionário Dieter Duhm denomina de “matriz sagrada”. Duhm escreve:
A matriz sagrada é o padrão cósmico que forma a base da organização da vida. Ela conduz as informações e energias necessárias à evolução e manutenção da vida. Quando o indivíduo se liga com esta orientação, abrem-se canais para a cura. Quando a humanidade se organiza de acordo com a matriz sagrada, abrem-se canais para a cura global.
Para além de toda a alienação e divisão, existe algo que todos os seres possuem em comum, algo que todos amamos profundamente. Esse algo não tem nome e está para além de qualquer descrição, mas consiste naquilo que ao longo da história foi vivenciado como “sagrado”. Quando cai o véu da separação, enfrentamos o carácter vibrante, eterno e verdadeiramente sagrado da existência. Quando o indivíduo entra neste espaço, ele depara-se com uma experiência de cura, regeneração e convergência, encontrando-se frequentemente sob grande protecção. O estudo e a aprendizagem de um modo de vida que se alinha com os princípios da força sagrada, permitirá que os nossos movimentos vençam de formas que anteriormente pareciam impossíveis. A chave para esta força não se encontra primariamente em determinadas estratégias ou actividades, mas numa mudança consciente de toda a nossa forma de viver, comunicar e actuar – da matriz do medo e da violência para a matriz sagrada.
Utopia ou Distopia
Em última análise, o nosso sucesso irá resultar de uma colaboração sem precedentes entre os diferentes órgãos de uma aliança global em ascensão. Para isso, é crucial estabelecer centros experimentais que modelem concretamente em pequena escala uma sociedade pós-capitalista, desenvolvendo estruturas sociais e ecológicas que convidem e não excluam as forças de cura da vida. Tais centros (em Tamera, designados “Biótopos de Cura”) e outras comunidades indígenas ainda existentes poderiam oferecer, a todos os interessados em abandonar o sistema actual, o conhecimento necessário à criação de comunidades funcionais de confiança e cooperação.
Diversos locais poderão abandonar o sistema dominante, criando regiões autónomas, dando origem a um novo sistema baseado na autonomia alimentar local, enraizada na interdependência global. Enquanto os movimentos sociais abrandam o ritmo da destruição através da sua resistência, poderiam também recuperar ecossistemas e implementar a infraestrutura para o pós-capitalismo. Os inventores poderiam contribuir com novas tecnologias para um número crescente de comunidades e regiões regenerativas, os doadores poderiam apoiá-las financeiramente, os jornalistas poderiam mobilizar a atenção pública necessária, e as alianças de governos progressivos poderiam criar “zonas livres” para a implementação destas iniciativas. Guiadas por uma visão global comum, um número crescente de pessoas poderia contribuir para o nascimento de uma nova era. Assim que uma alternativa global se tornar realista para um número crítico de pessoas, teremos criado as condições para a implosão do sistema dominante, dando espaço para algo novo.
Isto já não é um sonho. À medida que os cenários distópicos se tornam iminentes, a “utopia” afigura-se como a única opção realista. Não devemos esquecer que foi sempre fruto de necessidade existencial, visão, comunidade e entrega ao espírito que as pessoas tornaram possível o impossível. Juntemo-nos para construir um mundo onde a criatividade, cooperação e apoio mútuo se tornam a fundação de um modo sagrado de vida.
Martin Winiecki é activista, networker, autor e colaborador de Tamera, Centro de Pesquisa & Educação para a Paz, em Portugal, e responsável pelo encontro nacional de activistas “Defender o Sagrado”.