São várias as comunidades indígenas das Américas que acreditam que os animais descendem dos humanos e não os humanos dos animais. Nas suas cosmogonias1, no princípio tudo era humano. Ou melhor, outro ou mais que o humano, visto que a sua forma seria definida pela constância da metamorfose. Depois o mundo chegou ao fim e desse cataclismo formaram-se as várias espécies, plantas, rios, estrelas e minerais. Esta dispersão original acabou com um estado mítico de canibalismo primordial, onde tudo era indiferenciado; um tempo em que todos comiam os seus afins para se alimentar. Estas entidades, independentemente da sua espécie ou forma, permanecem ainda hoje humanas. São apenas alguns de nós quem, apesar das nossas tecnologias e ciências, não consegue ver uma humanidade nos outros. Os Yanomami, por exemplo, acreditam que o céu caiu sobre a terra e que o céu carregava uma floresta nas costas. Na verdade, para os Yanomami, como nos conta o seu xamã Davi Kopenawa, o céu caiu já por inúmeras vezes, redistribuindo esta humanidade comum a cada queda. É de supor que cada céu que cai, e cada floresta, põe em movimento um processo de sedimentação, metamorfoseando algumas entidades e enterrando outras – transformando-as em espíritos? Talvez em espíritos do petróleo ou do carvão, o que não estaria longe da explicação geológica desses materiais; ou talvez em espíritos do ouro, do lítio ou de qualquer outro mineral raro que hoje energiza a tecnosfera terrestre2.
Contra as visões escatológicas modernas sobre o fim do mundo, prefiro seguir aqui a dedicação de antropólogos como Eduardo Viveiros de Castro por estas cosmogonias indígenas, numa tentativa de pensar através e para lá do fim do mundo. Em outras palavras, pensar o fim como cosmogonia ou como princípio. Como exemplificado pelos mitos acima referidos, o “nosso” fim é apenas um de muitos, e o fracasso do “nosso” mundo simultâneo com a (re)emergência de outros mundos, talvez mesmo, nas palavras da antropóloga Elizabeth Povinelli, com a possibilidade de experienciar este mundo “de outro modo”. Como diz a famosa frase, “existe apenas um planeta”, mas este planeta abre-se numa pluralidade de mundos, mediados por diferentes ontologias, com diferentes dinâmicas entre natureza e cultura, ou até mesmo, nos casos mais extremos, mundos possivelmente sem qualquer distinção entre natureza e cultura.
Claire Tourner e Sam Farber atravessam as terras indígenas da Austrália depois de um satélite nuclear indiano ter caído do céu, extinguindo todos os dispositivos de energia do mundo, no filme Until the End of the World, de Wim Wenders (1991).Claire Tourner e Sam Farber atravessam as terras indígenas da Austrália depois de um satélite nuclear indiano ter caído do céu, extinguindo todos os dispositivos de energia do mundo, no filme Until the End of the World, de Wim Wenders (1991).
Tais cosmogonias confrontam-nos com duas reversões contraintuitivas da teleologia moderna: que o apocalipse está no passado, e que tudo é humano. Estas são reversões vitais, não fossem também as categorias de tempo e subjetividade o que vem sendo questionado pelo colapso de escalas e agências nas nossas sociedades, isto é, o fim da suposta inércia da natureza sob a agitação produtiva da cultura.
A temporalidade inversa destes mitos da criação, para além de ser a negação da teoria da evolução das espécies proposta por Herbert Spencer e Charles Darwin – como referiu Lévi-Strauss no seu livro A Oleira Ciumenta, nestes mitos, “que poderíamos chamar de evolucionistas (…) a tartaruga terrestre descende do macaco e o macaco do homem [e] o tapir e a cotia descendem de espécies vegetais.”3 – contraria a arrogância moderna de que o apocalipse tem de ser universal, quando na verdade o mundo acabou já para muitos outros, humanos e não-humanos. É sabido que até 95% dos ameríndios morreram entre 1492 e 1610. Isto sabendo que a população nativa ultrapassava em larga escala a dos recém-chegados. No século dezasseis, os europeus, numa perspetiva global, eram uma minoria.
Daí que a primeira fase da colonização das Américas tenha sido recentemente proposta como candidata para datar o princípio do Antropoceno. O apocalipse ameríndio deixou amplas áreas do território descuidadas e sem agricultura, provocando o declínio da produção de técnicas de terraformação indígena como, por exemplo, a terra preta amazônica, solo antropogênico e altamente fértil que, dada a sua mistura de carvão, pedaços cerâmicos, estrume e ossos, se revela eficaz na sequestração de dióxido de carbono. A prova material do impacto deste encontro transatlântico encontra-se escondida em amostras retiradas do subsolo do Antártico. Estas revelam como a floresta que veio a crescer pelos territórios que se encontravam cultivados antes do genocídio produziu um declínio global de emissões de dióxido de carbono – o que os climatólogos Simon Lewis e Mark Maslin chamam de Orbis Spike4. Em paralelo, o conhecimento sobre a terra preta, por parte tanto de índios como de brancos, tem contribuído para uma imagem antropogênica, entretanto reconhecida antropológica e arqueologicamente, da floresta amazônica – o que implica em simultâneo tanto o fim da ideia de uma natureza pura e intocada como a potencial legitimação de novas tecnologias de geoengenharia.
Não deixa de ser assustadoramente irónico que o efeito secundário deste primeiro evento antropogénico de grande escala tenha sido a aniquilação de parte da população mundial. Isto porque é prudente relembrar quão central foram, de fato, as Américas na constituição da modernidade. Como nos lembra Hélène Clastres, o confronto colonial com os ameríndios foi vital para a imaginação do progresso evolucionista moderno: a passagem de uma natureza selvagem progressivamente domesticada para uma futura cultura de produção e controle5. Os “primitivos”, no seu estado natural, representavam um estágio anterior da história; eram a confirmação viva do avanço civilizacional (cultura) e evolucionista (natureza) dos modernos6. Para os europeus, eles eram a prova de uma única espécie – os humanos – coexistente no mesmo presente, mas em graus distintos de evolução cultural e genética. A partir dessa separação gradual entre natureza e cultura, todos os seres vivos passam a distinguir-se ou por espécie (entre a humanidade e os animais, etc.) ou por cronologia evolutiva (entre os homens ou mulheres). Eis a importância da teoria da Orbis Spike. Esta impede-nos de pensar separadamente esse primeiro grande evento antropogénico e o nascimento da humanidade enquanto conceito moderno, um conceito histórico mas também ontológico.
Frame do filme The Laughing Alligator (1979), de Juan Downey. Video, preto e branco e cores, som, 27 minutos. Frame do filme The Laughing Alligator (1979), de Juan Downey. Video, preto e branco e cores, som, 27 minutos.
O genocídio indígena foi uma condição necessária à modernidade; coisa que a atual hegemonia multicultural, inserida no projeto de globalização neoliberal, seja na forma de um universalismo humanista ou de uma inclusão capitalista, pouco mudou desde então. Não é de estranhar, portanto, que o genocídio seja também o modo como a “nossa” modernidade termina. A evolução racionalista da modernidade conduziu-nos ao estado atual: canibalismo carbónico, oceanos radioativos, polímeros carcinogénicos e, mais recentemente, fracking e geoengenharia—geoengenharia que apenas reforça o isolamento da humanidade moderna na obsessão da sua aparente supremacia.
Ao escrever estas palavras, penso não apenas em mundos indígenas, mas também na atual extinção animal e vegetal: a maior desde o desaparecimento dos dinossauros. Isto num momento em que a astronomia vem descobrindo cada vez mais planetas situados fora do sistema solar, produzindo não apenas sonhos de um planeta gémeo ao nosso em algum lugar das profundezas do espaço sideral, mas também a esperança prometeica de colonização espacial e de uma nova fronteira capitalista. A questão encontra-se, portanto, mal colocada. Não se trata tanto de haver ou não vida no universo para além do planeta Terra, mas sim de que estamos neste momento a remover vida do universo a um ritmo alucinante – como se no universo pudesse apenas existir o humano, e isto num sentido altamente restrito do que humanidade pode significar, tal como nos indicam as referidas cosmogonias.
O que está a chegar ao fim é o mundo moderno – um mundo muito particular inventado a partir de 1492, e animado por uma ontologia naturalista no interior da qual a divisão entre natureza e cultura é instrumental. A humanidade, como “nós, modernos” a entendemos, não é mais uma solução – pelo menos não isoladamente, na nossa ignorância cosmo-ecológica. Pelo contrário, da perspectiva da Terra, a humanidade não parece ser senão um problema.
Geoglifos com 1000 e 2000 anos foram descobertos na região amazónica do Pará (Brasil) desde dos anos de 1970, como resultado do aumento da desflorestação. Geoglifos com 1000 e 2000 anos foram descobertos na região amazónica do Pará (Brasil) desde dos anos de 1970, como resultado do aumento da desflorestação.
Mas esta é uma humanidade contrária à das cosmovisões Yanomami ou Cashinawa da América do Sul, por exemplo, as quais são, no geral, descritas como animistas ou, como refere Viveiros de Castro, marcadas por um multinaturalismo perspectivista. Nas suas palavras, o multinaturalismo é tanto um negativo do multiculturalismo como a inversão do unilateralismo do naturalismo. Falar de mundos outros que os nossos não é simplesmente uma forma de diferença entre culturas, mas de diferença entre naturezas. Para o multinaturalismo, a natureza não é o cenário manso e transparente, embora complexo, imaginado pelos modernos. Se para os modernos a natureza é, ou costumava ser—visto que já não estamos tão certos—unificada para nós e por nós, para os povos aqui referidos é a expressão de diferentes encarnações e afetos que resultaram dessa diversificação primordial mítica.
De um ponto de vista multinaturalista ou de um esquema ontológico animista, a humanidade não é essa qualidade moral cartesiana na qual se funda o especismo moderno. Como exemplificado pelas referidas cosmogonias, humanidade é a forma de uma partilha, um atributo negociado, transversal a todas as entidades, biológicas ou não. Assim, para os mundos de inclinação animista deste mundo inevitavelmente comum, o problema não é a humanidade, mas a sua ideia enquanto espécie. A humanidade é uma totalização, sem dúvida, mas não nos termos de uma espécie. A humanidade seria antes uma cultura originária mas trans-específica; uma condição comum mas geradora de formas no espaço-tempo da diferença entre os seres: as tartarugas e os porcos que evoluíram dos macacos, de Lévi-Strauss.
Esta reversão cosmogónica da teoria das espécies e da evolução não deve ser entendida simplisticamente como a recusa da ciência moderna, mas sim como um reconhecimento da explosão pluriversal de um mundo até há bem pouco vista como hegemonicamente moderno, mas no qual já poucos parecem acreditar. Para antropólogos como Viveiros de Castro, Marisol de la Cadena, Lesley Green, e muitos outros, os indígenas (das terras baixas, dos Andes, da África do Sul, etc.) não são mais os invisíveis. Eles estão, na verdade, na linha da frente deste mundo pós-apocalíptico. Isto não é nem um idealismo ao estilo de Rousseau nem um escapismo cosmopolita. Como diz Viveiros de Castro, trata-se, por um lado, de aprender com a sua sobrevivência e reinvenção para lá do seu próprio apocalipse e, por outro, um sinal da vitalidade disruptiva de outras ontologias num momento em que o tecno-bio-capitalismo começa também a exibir sinais de transformação animista.
A propósito da Copa Mundial e em defesa pelos direitos das terras ameríndias, surgiu um conflito entre os indígenas e a policia (Brasília, Brasil, 2014)A propósito da Copa Mundial e em defesa pelos direitos das terras ameríndias, surgiu um conflito entre os indígenas e a policia (Brasília, Brasil, 2014)
Eis que chegamos ao cerne da questão; ao núcleo destes sonhos apocalípticos. Enquanto nós, ditos modernos, nos ocupamos com a procura por híbridos (de modo a que estes nos ofereçam respostas cosmopolíticas e horizontes pós-capitalistas), o capitalismo encontra-se por igual em ruptura consigo mesmo. Isto é, também o capitalismo redefine a sua nova ontologia: destruição criativa enquanto destruição de mundos. Ou seja, será que estamos a olhar (de um outro modo) para essas outras ontologias, inteligências e agenciamentos apenas porque o capitalismo no qual habitamos também está em transformação? Talvez seja essa a razão porque uma humanidade partilhada e imanente não nos pareça, neste momento, assim tão paradoxal. A modernidade está a evoluir para além do que uma vez foi, apenas para encontrar ao fim da sua longa estrada messiânica esses supostos escravos da natureza que em tempos conquistou, explorou ou aculturou—sejam eles pessoas, com as suas já não tão estranhas filosofias da natureza, ou mesmo animais e plantas que começam agora a surgir para nós como sujeitos em si mesmos, não de um modo animista, é de notar, mas não mais do modo do naturalismo moderno.
Para onde quer que olhemos, a humanidade já não é o que era, e menos ainda um produto exclusivo da modernidade. Uma humanidade distinta da noção de espécie (para muitos animismos indígenas) ou, inversamente, um pós-humanismo acelerado e hibridizado pela tecnologia. E como negar essa humanidade devota a um único Deus, representada na terra pelo Estado Islâmico, com o seu elogio da barbárie como técnica de gestão para uma mudança de regime, a sua fé no poder iconoclasta dos corpos?7
Enfim, o fim do mundo não é um assunto multicultural, mas sim multinatural. Claramente, fé nos híbridos não é o suficiente. O mesmo se poderá dizer do elogio da diferença. Em contraste com os discursos do inhumano ou do anti-humano, será possível sugerir, como acontece em sociedades animistas, que tudo é humano? Será tal palavra sequer relevante para lá do sentido histórico que lhe foi atribuído a partir do Renascimento? Manter essa palavra implicaria não apenas uma humanidade para lá da espécie, mas também para lá da modernidade. Mas isso seria um oximoro: uma humanidade amoderna? Quem sabe no fim do dia estas sejam as perguntas erradas. Mas sejamos claros, reconhecer a agência dos não-humanos não faz de nós animistas. O animismo é simplesmente a palavra antropológica para a crença em uma humanidade outra à qual os modernos têm sido fieis. E, no entanto, as ontologias não são fixas, elas mudam e se transformam, confrontam-se e negociam-se entre si. É isto que, de um ponto de vista multinaturalista, o fim do mundo quer dizer: entrar na cosmopolítica.
Somos já outros que nós mesmos. Óbvio. Basta olhar para cima: o céu está a cair. Desta nossa perspectiva o que nos é impossível ver é que o céu traz uma floresta nas costas.
[Este texto foi originalmente publicado na língua inglesa no e-flux Journal n. 65: Supercommunity (2015) como o editorial da sua seção especial sobre o tema Apocalypsis, para a 56ª Bienal de Arte de Veneza em 2015]
1.
Cosmogonia é a teoria sobre a origem do universo geralmente fundada em lendas ou em mitos e ligada a uma metafísica particular de um povo.
2.
1) Estas cosmogonias são expressas em diferentes regiões geográficas, e não apenas na América do Sul, como por exemplo entre os Kaluli da Papua Nova Guiné. Para mais, ver o livro Há mundo por vir?Ensaio sobre os medos e os fins (São Paulo: Cultura e Barbárie, 2014). 2) A “tecnosfera” é um conceito das tecnociências que propõe o entendimento da intensificação da relação entre a tecnologia e as transformações civilizacionais sobre o planeta como uma nova esfera, similar à hidrosfera, litosfera, e por aí em diante.
3.
Claude Lévi-Strauss, A Oleira Ciumenta (São Paulo: Editora Brasiliense, 1985) 14. Neste caso em particular, Lévi-Strauss refere-se aos mitos dos Waiwai, Kashinawá e Guarayo.
4.
Orbis Spike refere-se, por um lado, à noção de global, e de transações globais, iniciadas pela colonização das Américas, e, por outro lado, a Golden Spike, isto é, marcos cientificamente comprováveis, ao nível geológico, de uma drástica alteração climática no curso da história do planeta.
5.
Hélène Clastres, “Primitivismo e ciência do homem no séc. XVII,” Discurso, 13 (São Paulo: University of São Paulo, 1980).
6.
Se os portugueses e espanhóis que primeiro chegaram às Américas no século XV e XVI, as suas caravelas repletas de gente árabe ou no mínimo de conhecimento islâmico, eram já modernos é toda uma outra questão, sem dúvida pertinente para uma antropologia desses primeiros encontros.
7.
Abu Bakr Naji, The Management of Savagery: The Most Critical Stage Through Which the Umma MustPass, trans. William McCants (Harvard: John M. Olin Institute for Strategic Studies at the HarvardUniversity, 2006).
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