/// . Baobá Voador .
Territórios e práticas libertárias em redes sociais – Geopolítica do (des)conhecimento

“Es necesario desprenderse de las vinculaciones de la racionalidad-modernidad con la colonialidad, en primer término, y en definitiva con todo poder no constituido en la decision libre de gentes libres.” Anibal Quijano, “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad”

Esta investigação foi despertada pela recente emergência global de marchas, mobilizações e ocupações das praças e das ruas sendo organizadas através da internet, em especial os ciclos que se iniciam a partir da chamada “Primavera Árabe”, se espalhando durante 2011 pela Espanha e o restante da Europa para o Brasil e o mundo.

De fato, desde os anos 1990, diversos movimentos utilizam a internet como ferramenta para ação política, como os Zapatistas no México, ou o blog Centro de Mídia Independente (Rede Indymedia). No entanto, esta apropriação ocorreu de diferentes maneiras, destacando-se das manifestações recentes o uso intensivo de plataformas proprietárias de empresas estadunidenses, como Google, Facebook e Twitter.

À semelhança da pirataria de programas de computador, as redes sociais proprietárias popularizam o uso (e a dependência) das ferramentas, no entanto, concentram em poucas mãos o desenvolvimento das mesmas. Assim, quanto mais as redes sociais proprietárias são utilizadas, mais se fortalecem como um mecanismo de controle sobre a vida e as relações humanas, não somente padronizando mercadologicamente sua forma de se relacionar com uma amiga, família ou certo tema, mas também estabelecendo-se como poderosos oligopólios da comunicação global.

Discutiremos nesse texto diferentes formas de apropriações tecnológicas por parte dos movimentos sociais que utilizam redes de relacionamento virtuais, demonstrando que a utilização de plataformas proprietárias muitas vezes pode ser um erro tático, configurando-se como um empecilho para a consolidação de uma cultura livre na Internet.

Para isso, reunimos os exemplos mais notórios das estratégias usadas por estas corporações da comunicação, como: censura prévia, bloqueio do compartilhamento de arquivos com copyright, exclusão de informações consideradas inapropriadas e colaboração com órgãos do governo em ações contra ativistas. Por outro lado, apresentaremos algumas experiências de redes sociais livres ou federadas, que se utilizam das mesmas tecnologias digitais para promover a autogestão, a cultura livre e aberta, a segurança dos dados, o fortalecimento de comunidades colaborativas e a des-mercantilização das informações e dos afetos.

Sabemos que a internet ou as tecnologias de comunicação em si não afastam as pessoas. Nas manifestações recentes, elas foram compelidas a irem às ruas graças aos chamados nas redes sociais. De fato, pipocam as revoluções 2.0. No entanto, inseridas em espaços de comunicação totalmente comerciais e proprietários, estas articulações acabam colaborando também com uma engrenagem de vigilância e captura das subjetividades, sem promover uma ruptura profunda de paradigmas no campo da comunicação e cultura em rede.

Do outro lado do front, as redes livres contribuem com um modelo de envolvimento afetuoso e abundante, retomando a autonomia e uma postura crítica – tanto política quanto poética – sobre a tecnologia. Usam as infra-estruturas físicas comerciais de conectividade (satélites, celulares, cabos de fibra ótica, etc), mas criam uma carapaça libertária, uma re-apropriação nos nós de suas redes lógicas (programas e servidores livres).

Uma boa definição dos princípios das Redes Livres é a do manifesto de Redes Livres Latino-Americanas, lançado no Fórum de Software Livre de 2011 [1]:

“Dado o estado atual da rede das redes, a Internet, que é operada e controlada mundialmente por um pequeno número de corporações internacionais cuja motivação principal é meramente econômica; e considerando que as implicações que isto tem no desenvolvimento da rede das redes, os membros e ativistas das Redes Livres manifestam que uma rede livre é aquela rede informática que é construída e administrada colaborativamente pelos próprios usuários e apresenta, no mínimo, estas características:
garantia à descentralização e evitar a monopolização de recursos, a coerção ou a opressão; respeitar a neutralidade da rede; garantia ao acesso público e livre; sua estrutura é de rede distribuída onde o crescimento é possível a partir de qualquer ponto existente; a interconexão se realiza entre pares que podem publicar ou receber serviços e conteúdos em igualdade de condições; promove a criação de outras redes livres, sua interconexão e interoperabilidade.”

Outro exemplo de rede aberta é o Movimento dos Sem-Satélite [2], uma rede global de artistas, ciberativistas, desenvolvedores de software e hardware livre e cientistas amadores que atestam em seu manifesto o amplo campo para o qual se lançam:

“Comunidade de artesãos de bits e volts, poetas humanistas, cientistas nômades, para onde estamos indo? Confio no pulso dos seus passos, nossa revolução é o próximo segundo e o desafio constante de não render-se ao conformismo de simplesmente entreter-se ou entreter, distraindo o fato de que vivemos além da história, dos muros, dos bancos, da semelhança dos corpos e suas consagüinidades. Queremos um ecossistema condizente com toda esta pirotecnia prometéica de um suposto Sapiens, uma simbiose duradoura e enfim poder pensar em criar e imaginar outros espaços e formas para todo esse conhecimento que mantemos aceso nesta chama. Mas se ainda hoje nossos semelhantes marcham por um pedaço de chão para sobreviver, outros alienam seus instintos mais criativos em busca de algum reconhecimento dentro de uma esmagadora cultura de consumo auto destrutivo, nos deparamos com a questão: qual o papel que nós aqui já alimentados e abrigados temos em pensar numa soberania deslocalizada? E na transmissão de conhecimentos que buscam reverter esta pulsão auto destrutiva da humanidade? A conjectura deste manifesto é em função de apontar uma faísca rachando no horizonte: Criaremos nosso primeiro satélite feito à mão e mandaremos ao espaço sideral entulhado de satélites industriais corporativos e governamentais.Será nosso satélite capaz de tornar nossas redes ainda mais autônomas? Ou o caminho é repensar e mapear toda atual estrutura de nossa tecnocracia e ciência a ponto de decidirmos estratégicamente um caminho totalmente diferente? Qual?? Muito mais que cobaias da Tecnocracia! Sonhando e Dançando: marcham os Sem-Satélite.”

Ambas iniciativas colocam sob outra perspectiva o uso e o terreno político-cultural das novas tecnologias de comunicação. Ambos movimentos deslocam e revelam um campo de lutas aparentemente inócuo, mas que está presente em toda a nossa vida contemporânea. Principalmente a terceiromundista. Questionam os mesmos oligopólios globais de infocomércio, publicidade, regulação e vigilância, propondo na prática territórios e fazeres horizontais em prol de bens comuns.

Pensando em redes sociais, certas questões são importantes neste contexto. O uso das plataformas proprietárias estaria sendo feito por falta de opções livres ou pela influência dos usuários das ferramentas proprietárias? Quais as consequências de um uso acrítico destas plataformas? É possível fazer uma migração de certos grupos para plataformas abertas, pelo menos os que podem sofrer algum tipo de censura ou vigilância através dos sistemas comerciais? É possível utilizar de forma tática as ferramentas proprietárias?

Do jardim ao shopping

No caso das redes sociais proprietárias, as diferentes empresas competem entre si pelo tempo e a atenção das pessoas, nossos maiores recursos não-renováveis, traduzindo-os em seu faturamento mensal através da venda de certos serviços pagos e a ocupação deste tempo de seus usuários com anúncios e propagandas. Longe de realizar a utopia da descentralização dos discursos, os oligopólios do capitalismo cognitivo são ainda mais fortes no caso das mídias eletrônicas, inclusive extrapolando-as. Neste sentido, é notório o exemplo do Google, que possui braços na biotecnologia, intra-estrutura da internet, eletricidade, patentes, software, hardwares, entretenimento digital, notícias, bibliotecas, o espaço sideral e o código genético [3].

O Brasil aparece como um dos mais cobiçados clientes neste novo sistema de circulação do capital e do conhecimento, o chamado capitalismo cognitivo. Quase 60% do tráfego na rede social Orkut é brasileiro [4]. E de aproximadamente 800 milhões de usuários conectados ao sistema Facebook, 21 milhões são brasileirxs. Se consideramos que o número médio de brasileirxs conectados à Internet é de 41 milhões, praticamente a metade delxs usam Facebook, uma a cada duas pessoas conectadas. [5] Mesmo com um sólido movimento pró-software/rádio/mídia-arte livre em curso próprio, movimentos como Metareciclagem fazendo 10 anos, ainda não conseguimos popularizar no Brasil a prática da liberdade – os fazeres livres. Afinal a informática é uma manualidade como outra qualquer. Quanto mais livre, mais artesanal e comunitária. Essa é a nossa digitofagia (Ricardo Rosas). O software livre nunca passará de uma questão meramente técnica se não for vivida como atividade colaborativa cotidiana.

A diretora de tecnologia do grupo OpenDemocracy, Becky Hogge aponta algumas reflexões sobre as redes proprietárias no texto ‘A nuvem da liberdade’, publicado na Revista PoliTics:

“O Facebook é uma hierarquia, e não uma rede. O Twitter é uma hierarquia, e não uma rede. O Gmail é uma hierarquia, e não uma rede. Sim, aqueles de nós que utilizam essas ferramentas são “rede”: somos, como os utópicos diriam, livremente associados. Mas também estamos fundidos com os gigantes corporativos que fornecem e lucram com essas ferramentas, por cujos servidores passam nossas trocas mais íntimas ou banais. A Web 2.0, assim como fez a “terceira via” de ambiciosos líderes políticos de centro-esquerda na década de 1990, traiu seus primeiros ideólogos puristas e passou a cortejar o mercado. […] Em vez de uma exposição total aos perigos e armadilhas da natureza humana, passou a oferecer uma série de jardins murados, cuidadosamente cultivados e livres de ervas daninhas […] inscritos com os nomes de seus criadores: Twitter, Facebook, Bebo e MySpace. Eles tornaram-se insanamente populares, e em muitos casos tornaram podres de ricos os seus tranquilos proprietários, no Vale do Silício.” [6]

A pesquisadora cita ainda alguns dados, atribuídos à empresa Arbor Networks: quase 60% de toda movimentação na Web converge para aproximadamente 150 empresas. 30% deste total vai para apenas 30 empresas: Google, Facebook, Twitter e outras seletas organizações. Trata-se de um “efeito Mateus” [7] que confere um enorme poder a estas empresas de controlar o modo como nos relacionamos com as informações publicadas na Internet, através de algoritmos que analisam padrões comportamentais para então priorizar conteúdos que são considerados os mais indicados para aquela pessoa. Criam-se assim bolhas informacionais de acordo com perfis de usuárixs/consumidorxs. Deste modo, uma mesma busca pode retornar diferentes resultados, de acordo com os interesses políticos e econômicos que são implementados através destes sistemas de filtragem de conteúdos. [8]

O conceito de jardins murados surge para dar conta das práticas técnicas de controle da informação operadas dentro deste cenário. A analogia é utilizada para demonstrar como as restrições de acessos não-aprovados pelo administrador de um serviço, como é o caso de sítios e redes sociais que não permitem a interoperabilidade ou exportação dos dados inseridos dentro de seus sistemas (como por exemplo tornar públicas, ou pelo menos não mediadas por registro, as comunidades criadas, ou ainda exportar facilmente conversas para um blog pessoal). Dessa forma, todo usufruto das informações baseadas no conhecimento ou nas relações humanas fica restrito aos administradores do sistema, a serem manipuladas única e exclusivamente para categorização e venda. E os afetos humanos e as relações humanos, traduzidos em infovias digitais, tornam-se a nova matéria-prima do sistema econômico global.

Na batalha entre o comunismo entre pares (p2p) e o modelo servidor-cliente, as redes sociais proprietárias se utilizam de forma perigoso do segundo paradigma, pondo em risco o futuro da própria web. A avaliação é de Tim Berners Lee, que criou a “Word Wide Web” utilizando um identificador único de recursos (URI) para possibilitar a interconexão de dados entre diferentes sites. Empresas como o Facebook e a Apple deliberadamente ignoram este padrão para não permitir que as informações que por ali postas possam ser acessadas a partir de outro ponto da rede fora de seus sítios. “Os sítios web compõem esses bits de dados em brilhantes banco de dados e reusam a informação provida-de valor ao serviço-somente dentro de seus sítios. Uma vez que você insere dados em um desses serviços, você não pode facilmente usá-lo em outro sitio. Cada sitio é um silo, murado dos outros. Sim, suas páginas estão na Internet, mas os seus dados não. Você pode acessar uma página web sobre uma lista de pessoas que você criou, mas vocẽ não pode enviar essa lista, ou itens dela, a outra página web.” [9]

No texto “Redes sociais livre na internet 1.0”, o coletivo latino Pirra também faz uma análise crítica de algumas condições às quais os usuários de redes sociais proprietárias estão submetidos, a partir do momento em que dão um clique no botão de “Aceito os Termos” sem ler o acordo que estão firmando entre si e a empresa dona do serviço que será utilizado. Além do risco da cessão automática dos direitos autorais sobre os trabalhos ali incluídos, o texto alerta ainda que as empresas podem se reservar ao direito de guardar todas informações eternamente em seus bancos de dados, mesmo que o perfil do usuário seja apagado por ele.”Onde anteriormente eram necessários pessoas infiltradas para obter informações de outras pessoas, grupos ou movimentos sociais, agora não é realmente necessário já que toda essa informação pode ser encontrada em perfis de redes sociais, que, em alguns casos possuem nomes reais, endereços, fotos, links para pessoas com que relacionam-se, dando a conhecer sua agenda de atividades. Mais além do que ocultar algo, bom ou ruim, o que exigimos é o direito à privacidade na Internet e estes serviços violam essa privacidade.” [10]

Criar um perfil em uma rede social pode servir como uma válvula de escape da identidade social, estimulando novos modos de nos relacionar com nossa vizinhança. No entanto, escolhendo espaços privados para fazermos isso, muito pior do que jardins murando, interagimos em verdadeiros shopping centers virtuais, onde o que se vende é o nosso tempo como usuário e a dependência da ferramenta. No caso do Facebook, o sistema captura todas as expressões e relações humanas deste ambiente para organizá-las em 57 categorias diferentes. [11] Incluindo informações extremamente específicas, como o modelo da câmera utilizada para registrar determinada foto, este sofisticado banco de dados rendeu nada menos que US$ 1,86 bilhões apenas em 2010 para a empresa. [12]

Para buscar um pouco de privacidade na internet, algumas ferramentas, manuais e campanhas foram desenvolvidos [13]. Um exemplo é a Máquina Suicida Web 2.0 [14], uma página onde você pode apagar o conteúdo dos perfis pessoais de serviços como MySpace, LinkedIn e Twitter. O site não faz mais do que deletar todos esses dados automaticamente em poucos minutos, simplificando um trabalho que manualmente poderia levar horas. Considerada por seus criadores como uma peça sócio-política de net-arte a plataforma exibe frases como: “Dê adeus com dignidade”, “Você quer conhecer os seus vizinhos reais novamente?”, “Você quer sua vida real de volta?”, “Pare com a auto-procastinação” e “Melhore o seu relacionamento, desuna-se de seus acossadores”.

É a falta de posicionamento político (boicote, migração, experimentação) nas escolhas tecnológicas que favorece práticas de controle e censura nestes ambientes e a negação do livre compartilhamento de materiais na rede, como por exemplo o bloqueio efetuado pelo Facebook e Google a sites e formatos como o 4shared e arquivos torrents, comumente utilizados para troca de materiais com copyright [15]. Além disto há ainda, a proibição de outros conteúdos considerados ”impróprios”, como fotos de amamentação, beijos gays [16], informações sobre a luta anti-proibicionista, além de diversas páginas de ativistas censuradas nos Estados Unidos [17], Cuba [18], Macedônia [19] e mesmo no Brasil.

Destaca-se neste processo a colaboração com as instituições estatais para vigilância e monitoramento das pessoas. Desde 2006, por exemplo, a Polícia Federal brasileira tem acesso especial ao Orkut, podendo consultar dados privados dos usuários e apagar conteúdos sem a necessidade de autorização judicial. O governo brasileiro é recordista mundial de requisições de remoção de conteudo para o Google. [20] E apenas entre janeiro e junho de 2011, o sistema jurídico nacional encaminhou mais de 700 pedidos judiciais para disponiblização de dados privados dos usuários do serviços. [21]

De outro lado, relatos anônimos de ativistas descrevem a censura perpretada pelo Facebook à comunidades feministas e de luta antiproibicionista no Brasil: “Minha experiência foi com a Marcha das Vadias, o evento no Facebook foi deletado duas vezes por denúncia de “conteúdo impróprio”, apenas por conter a palavra “vadia”, nas duas vezes o evento já tinha mais de 1000 pessoas confirmadas. Já o evento do OcupaRio, de 15 de outubro, foi tirado do ar deliberadamente, com quase mil pessoas confirmadas”, diz ativista brasileira.

Em outro relato anônimo, vemos uma situação semelhante: “O que aconteceu no Facebook em relação à censura foi o seguinte: os perfis de usuários utilizados pelo Growroom, pela Rádio Legalize e pelo [bloco] Planta na Mente (movimentos que lutam pela legalização da maconha) foram deletados pela administração da rede social sem aviso prévio. No caso do nosso bloco foi uma tristeza para nós, pois era o principal meio de divulgação de todas as nossas atividades, haviam muitas imagens armazenadas e tínhamos mais de 4 mil contatos como “amigos”. O Facebook alega que “Profile” não pode ser utilizados por coletivos, empresas etc, que para isso existe a “Fan Page”. No entanto, não há conhecimento de outro grupo que tenha o perfil deletado que não seja com esse tema”, diz outro ativista.

O Facebook ainda protagoniza hoje um dos casos mais notórios de captura das informações e monitoramento da vida, defendendo a adoção do chamado “compartilhamento sem atrito”. Trata-se de implementar rotinas e sistemas que acompanhem as atividades do usuário permanentemente, mesmo quando x usuárix não está logadx ou conectadx diretamente ao sítio do Facebook. O objetivo seria poupar tempo dx usárix, mas na prática o mecanismo amplia ainda mais o poder da empresa, levando-o além dos limites de seu site.

Possíveis causas dessa utilização em massa das redes sociais proprietárias podem ser tanto devido à estabilidade de serviços de hospedagem – especula-se (pois a empresa não revela dados) que o Google hospeda suas páginas em quase um milhão de servidores espalhados por todo o planeta, mais do que qualquer outra empresa [9] – ou mesmo a fome de bits das ferramentas da web 2.0, sistemas dinâmicos de publicação que requerem processamento de áudio, vídeo etc, e a necessidade de grande banda para a transmissão em tempo real.

Reconhecemos que é possível o uso tático destes canais de comunicação privados. De modo geral, estes usos são caracterizados pela não-dependência do sistema proprietário como o único repositório dos dados que ali são inseridos, a possibilidade do anonimato e produções coautorias quando necessário e a introdução de conteúdos críticos à tecnocracia que sustenta o oligopólio das comunicação digitais. No entanto, especialmente para movimentos políticos de dissenso, é especialmente preocupante a predominância absoluta da escolha por estas empresas como mediadoras das relações humanas.

O estadunidense Robert Darton descreve no texto ‘1789 – 2011?'[22] o processo das manifestações populares que reconfiguraram a política do Egito no ano de 2011. O caso é um exemplo claro deste uso tático das redes sociais proprietárias. “Militantes habituados ao ativismo de internet marcavam o ritmo das manifestações, usando os mais atualizados instrumentos de comunicação. Nada conteve o avanço do movimento desde o primeiro protesto, dia 25 de janeiro, quando Wael Ghonim, 30 anos, executivo da Google, mostrou o rosto horrivelmente mutilado de Khaled Said, vítima da brutalidade policial, na página Facebook que criara “Todos Somos Khaled Said”. Do Facebook às emoções viscerais por YouTube, a mensagem viajou pelo mundo. E então, logo depois do início das manifestações, Ghonim desapareceu. Dia 27 de janeiro, enviou mensagem preocupada, pelo Twitter “Rezo pelo #Egypt. Preocupado. Governo planeja crime de guerra contra o povo. Estamos prontos para morrer #jan25″. Depois, desapareceu. Passou 12 dias de olhos vendados, no que deve ter sido uma câmara de tortura. Quando foi libertado, viu-se repentinamente à luz do dia, sendo entrevistado pela única rede independente de televisão que havia no Egito. Quando lhe disseram que havia centenas de pessoas espancadas até a morte nas ruas, Ghonim desmoronou, e afastou-se das câmeras chorando convulsivamente. Seus comentários foram imediatamente disseminados no YouTube e Twitter, eletrificando todo o Egito”.

Como se vê, são possíveis usos críticos e táticos das redes proprietárias. Porém, vale lembrar que não é a ferramenta em si que propicia as mobilizações na vida real, mas o sentimento coletivo de indignação com o fracasso da democracia partidária, dos resquícios ditatoriais do governo e do livre mercado como solução econômica global.
[23] As mudanças partem das pessoas e do “espírito do tempo”, não de determinado estágio tecnológico. Para superarmos as redes proprietárias precisamos começar a construir nossos espaços seguros. Sem pretensões de esgotar todas as referências no tema, reunimos abaixo um breve apanhado de algumas plataformas que podem servir de base para tais construções, pois são organizadas a partir do respeito à autonomia e liberdade de seus habitantes:

* Crabgrass: Desenvolvido pelo coletivo Riseup, é uma plataforma de comunicação em código-aberto que pode ser utilizada de duas maneiras: instalando-a em um servidor próprio ou através do serviço online mantido pelo grupo chamado We (we.riseup.net). Segundo a descrição do serviço, “Crabgrass é difícil de matar: devido a seu caráter de rede, é muito difícil remover as raízes de grama o suficiente para se livrar dele. É resistente a muitos herbicidas.”

* Elgg: É um dos principais programas de código aberto voltado para redes sociais. Oferece funções de de blogs individuais ou comunitários, comunidades com fóruns de discussões, repositório de arquivos e um serviço simples de micro-blogs.

* Identi.ca: Micro-blogger semelhante ao Twitter que permite o envio de mensagens curtas, através de computadores, celulares ou mesmo por meio diretamente de um site próprio, utilizando a tecnologia RSS. É possível ainda integrar o Identi.ca ao Twitter para sincronizar as informações entre as duas plataformas. O serviço fica disponível no endereço: www.identi.ca

* Diáspora: O site é uma rede social que está em uma versão alfa e segue em desenvolvimento, cuja premissa é garantir ao usuário total controle sobre as informações que são compartilhadas na plataforma. Além disto, por ser uma rede social federada, o Diaspora pode ser configurado para trocar informações com outras plataformas, mesmo que fechadas, não obrigando o usuário a depender exclusivamente de um site. O Diaspora pode ser encontrado através do seguinte endereço: https://joindiaspora.com

* N-1: Baseado no Elgg, N-1 (https://n-1.cc/) destacou-se por ter sido a plataforma utilizada por muitos dos manifestantes que organizarão o movimento 15M na Espanha. O êxito inspirou a criação de outros espaços para atender a demanda específicas, como a rede (http://anillosur.cc/), que parte do mesmo sistema do N-1, porém é dedicada a repensar a comunicação e a política no Sul global, hospedado no Chile.

2012
Tatiana Wells e Adriano Belisário

Citações e referências

[1] http://redeslibres.altermundi.net/Manifiesto
[2] http://devolts.org/msst/?page_id=117
[3] http://www.youtube.com/watch?v=R7yfV6RzE30&NR=1
[4] http://en.wikipedia.org/wiki/Orkut
[5] http://en.wikipedia.org/wiki/Facebook
[6] http://www.politics.org.br/sites/default/files/poliTICS_09_03_hodge.pdf
[7] Na sociologia, o Efeito Mateus descreve processos de concentração de poder ou riqueza, tomando como mote a passagem bíblica do Evangelho de Mateus (13:12) que diz: “Pois quem tem receberá mais, para que tenha mais ainda. Mas quem não tem, até o pouco que tem lhe será tirado”. No teoria das redes, pode-se dizer que o Efeito Mateus foi traduzido no modelo Barabási-Albert, que descreve como nós com muitas conexões tendem a concentrar a ligação de novos nós em uma rede de livre escala.
[8] http://www.thefilterbubble.com/
[9] http://www.theregister.co.uk/2010/11/20/berners_lee_says_facebook_a_thret_to_web/
[10] http://baobavoador.noblogs.org/post/2011/10/14/redes-sociais-livres-na-internet-1-0/
[11] http://vimeo.com/30964424
[12] http://blogs.estadao.com.br/rodrigo-martins/2011/07/06/facebook-lucra-us-186-bilhoes-com-as-fotos-e-videos-que-voce-posta/
[13] http://www.mostre.me/privacidade
[14] http://suicidemachine.org
[15] http://torrentfreak.com/google-now-censors-the-pirate-bay-isohunt-4shared-and-more-111123/
[16] http://www.lezfemme.com.br/news/facebook-censura-foto-de-beijo-entre-dois-homens
[17] http://blogtown.portlandmercury.com/BlogtownPDX/archives/2011/03/22/hack-back-right-wing-group-subpoenas-queer
[18] http://www1.folha.uol.com.br/mundo/861181-cuba-denuncia-censura-do-facebook.shtml
[19] http://protestira.me/?p=273
[20] http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/10/brasil-lidera-lista-de-pedidos-de-remocao-de-conteudo-do-google.html
[21] http://www.google.com/transparencyreport/governmentrequests/BR/?p=2011-06&t=USER_DATA_REQUEST
[22] http://www.nybooks.com/blogs/nyrblog/2011/feb/22/1789-2011/
[23] http://passapalavra.info/?p=39994

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