O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro dedicou o seu livro: Os dilemas da América Latina aos “jovens iracundos”, que surgiram nos anos 70, com duas contribuições radicais no campo da política. A primeira delas foi contestar a própria esquerda, mas não para defender o sistema vigente “e sim para combatê-lo mais eficazmente”. A segunda era que estas “novas safras revolucionárias” aprenderam que podiam “estar em desacordo, e mesmo assim estar juntos”. O recente ciclo de protestos nas distintas cidades do Brasil evidencia que os “jovens iracundos” voltaram e agora, com toda certeza, renovados.
É bem certo, que o contexto é diferente, o muro de Berlim foi derrubado, surgiram pontes sociais que facilitam o uso da internet em escala mundial. A esquerda chegou ao poder institucional no Brasil e transformou significativos cenários, como o da pobreza extrema do país, principalmente através de programas assistencialistas. E com isso acabou trocando “emancipação” por “inserção” dentro do marco da globalização neoliberal. O Brasil poderá chegar a ser uma “potencia geopolítica”, como afirma o ex-presidente Lula, no entanto não logrará este êxito sem rever algumas subordinações internas e externas. As elites nacionais consolidam seu poder através do crédito público do BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento, além disso, os empreendimentos de infraestrutura (estradas, dutos, portos, barragens, etc.) são construídos para fortalecer a criação de grandes conglomerados industriais (alimentação, petroquímica, metalúrgicas, telecomunicações) e exportadores de matérias primas (soja e petróleo), setores estes que vão consolidando sua hegemonia pela América Latina. (1 – Ver livro de Raúl Zibechi, Brasil Potencia: entre la integración regional y un nuevo imperialismo, Desde abajo (Bogotá) y Baladre-Zambra (Málaga), 2012.)
Contudo, todos esses investimentos não alcança o bem estar da classe trabalhadora, nem em seus salários ou em seus direitos sociais, nem esta se identifica ou participa das políticas expansionistas, pois um maior acesso ao consumo cresce a custa do endividamento das famílias e do sucateamento dos serviços públicos como saúde e educação. Dessa forma, como acontece em quase toda América Latina, o extrativismo se impõe como motor da política energética e agroexportadora, mas dependente das necessidades materiais de países como China, do consumo de carne dos países industrializados que demandam soja e pasto para suas criações de animais ou de biodiesel como fonte de reserva internacional, frente ao esvaziamento dos poços petrolíferos. A isto, acrescentamos o peso do pagamento das dívidas internas e externas que existem em países como o Brasil, que chegam a serem superiores a 40% do orçamento federal.
Não é de se estranhar, que os (novos) jovens iracundos contestem também o papel do núcleo dirigente do PT, como firme aliado das elites políticas-econômicas. O que unido aos frequentes casos de corrupção que afetaram aos altos cargos da nação, fez com que o descontentamento buscasse novas vias de canalização, superando o ciclo político (as manifestações) surgidas no Brasil nos anos 80. Fala-se de “democracia real”, como também, assim realiza o movimento 15M no estado Espanhol, que não restringem dita democracia a eleição de representantes nos parlamentos ou em um partido determinado. A democracia esta e se conquista em muitos lugares.
O fenômeno mediático de Mídia Ninja (Narrativas independentes, Jornalismo em Ação) ilustra muito bem isto: “jornalismo cidadão” para “defender a democracia”. Também, as formas de organização de protestos do movimento Passe Livre, defendem um funcionamento “horizontal, autônomo, independente e apartidário” em cada cidade. Através da campanha “Cadê o Amarildo?” se investiga e se acusa aos diferentes governos e representantes policiais a respeito de todos os “desaparecidos da democracia”, como é o caso de Amarildo na favela da Rocinha no Rio de Janeiro.
A sucessão de manifestações populares que ocorreram em 2013 no Brasil, no seu ponto mais alto, não representou só um ciclo de protestos, de demandas concretas e ações pelas ruas. Há toda uma revolução nas formas de fazer e entender a política, nas próprias articulações entre organizações políticas e cidadãs. Trata-se, ao meu entender, de um ciclo de mobilizações mais amplo. São três os gritos que se sobrepõem, com conexões com outras vozes provenientes de América Latina e do resto do mundo. Em primeiro lugar aparece com ecos globais, o grito de dignidade, dos direitos sociais e (auto) governos em uma sociedade onde (mega) cidades que aumentam suas dinâmicas de desigualdade e exclusão. Quiçá, os Zapatistas sejam os que melhores simbolizam este grito com seu lema “Os rebeldes se buscam”, que vem tendo eco em muitas das mobilizações globais do século 21. No Brasil temos o grito dos excluídos que a cada setembro vem convocando (este ano
com mais repercussão social) aqueles que não têm uma parte do bolo do “Brasil potencia”, ou aqueles que não estão de acordo com a construção desta “potencia neoliberal”. Assomando-se a isto, estão também, as importantes mobilizações realizadas pelos professores em defesa da escola, como exemplo, as 50.000 pessoas que apoiaram aos professores em defesa de uma educação pública, na cidade do Rio de Janeiro no dia 7 de outubro.
Este grito é compartilhado com o grito de direito ao território, mais presente em outros países. Um caso mais recente e pragmático ocorreu em Colômbia, nos protestos campesinos de agosto e setembro de 2013 que paralisaram o país, demandando entre outras questões, a revisão do tratado de Livre Comércio com Estados Unidos e a constituição de áreas de reserva campesinas para orientação de soberania alimentar e para os sistemas agroalimentares locais. Nas ultimas décadas assistimos ao auge dos movimentos de base sócio comunitária, como os próprios zapatistas, a fortaleza dos movimentos “sem terra” ou os de agricultores familiares que formam parte da via campesina, as áreas indígenas de autogoverno conquistadas em Bolívia, Colômbia e Venezuela. No entanto, as cidades também fazem parte do território e estas devem democratizar-se ao invés de serem focos permanentes de exclusão. E daí que, “tarifa zero” é mais que uma reclamação de transporte público, se converte como eles e elas afirmam: “O MPL deve fomentar a discussão sobre
aspectos urbanos como crescimento desordenado das metrópoles, relação cidade e meio ambiente, especulação imobiliária, a relação entre drogas e violência, e desigualdade social”.
Finalmente, e aqui se incorporam totalmente as “novas camadas”, na atualidade mais rebelde que revolucionário, o direito de decidir sobre questões que nos afetam e que encontram ressonância em jovens acostumados a palavras como “eleição” ou “liberdade”, que tem nas novas tecnologias a possibilidade de construir redes de afinidade sem organismos centrais pelo meio e estão sendo escutados em outras partes do mundo. É o grito de radicalização da democracia, que também atravessam aos outros gritos (por exemplo, as demanda de governo, gestão da democracia nas cidades, conquista de direitos básicos: de soberania alimentar, de economia solidaria, de cooperativismo nas fábricas e no campo, de gestão ambiental de território e bens naturais, etc.), que hoje estão dando lugar aos protestos dos novos movimentos globais, exemplificado pelo já citado movimento 15M espanhol, pelas revoltas cidadãs islandesas frente aos ajustes neoliberais, no “Yo Soy
132# em México, na emergência de partidos baseados em assembleias como o movimento 5 estrelas em Itália, o “Y’em a marre” (Ya basta!) em Senegal. Além dos protestos, estes novos movimentos globais são à base da constituição de “novos rebeldes” que como veremos a seguir, que juntamente com redes mais clássicas também enfatizam a construção de outras
sociedades. Para isso defendem a ocupação de ruas, dos meios de comunicação, das formas de produção, das formas de economia solidárias, dos mercados locais (agroecológicos) e etc. Os novos rebeldes protagonizam fenômenos menos visíveis, porém evidenciam o gosto pela diversidade, pela revolução “vinda de baixo”, do politico mais cotidiano e desde o protagonismo social. Nisso se parecem aos “jovens irancundos” de antes e da atualidade, que se diferenciariam na menor orientação partidária vanguardista e na menor presença de representantes políticos ou simbólicos, que aspiravam, a partir da década de 60, figuras como Che Guevara, a própria revolução cubana ou as insurreições foquistas de movimentos guerrilheiros em América Latina.
Dessa forma, os “jovens iracundos” voltaram se renovaram e buscam renovar a política (o poder instituído) desde a política (social, do poder exercido no cotidiano). Mas, até que ponto essa lutas são “globais”? E no Brasil, que tipo de relações estes novos protestos mantém com as novas formas clássicas de fazer política? Que papel, destinamos a atores como o chamado Black Block neste ciclo de mobilizações? Qual é o potencial destes novos sujeitos políticos para uma mudança real? Ao fio das reflexões da introdução, ofereço aqui algumas teses.
1.Os novos “jovens iracundos” formam parte dos “novos movimentos globais”.
As características formuladas por Darcy Ribeiro são hoje aplicáveis a fenômenos recentes como o 15M na Espanha, os “indignados” turcos ou as convocatórias surgidas desde Yo Soy 132# em México. O protagonismo social nas ruas (antes de qualquer bandeira) está presentes em todos esses países. Os rebeldes se buscam e caminham perguntando, dizem os zapatistas. Consequentemente, estes jovens, em colaboração com os desafetos da democracia autoritária e das transformações vindas dos partidos verticais, se buscam para identificar as demandas sociais a partir de uma radicalização da democracia, visível em suas formas de organização (extremamente horizontais, formando assembleias, evitando representantes dentro do possível) e em seus protestos para pedir uma democratização das relações sociais em seu conjunto. Estes novos movimentos se tornam “globais”, já que: i) recuperam desafios que tem que ver com o sistema em seu conjunto, sendo a radicalização da democracia seu substrato e consequência; ii) tem uma vocação planetária em suas formas de expressão, em suas criticas ambientalistas, no internacionalismo de suas lutas; iii) constroem com facilidade, lutas globais a partir de demandas pontuais que tem a ver com
necessidades básicas da população: educação e saúde publicam; segurança e soberania alimentar; direito de expressão política; críticam do autoritarismo dos governos, políticas e meios de comunicação.
2. O Brasil inicia um ciclo político próprio que fecha o ciclo nascido nos anos 80 com a esquerda mais clássica.
Os protestos no Brasil se nutrem do presente. Existe uma janela política que inspira protestos e que continuará aberta nos próximos anos, que está relacionada com a imposição de investimentos aos empreendimentos da copa mundial de 2014 e das olimpíadas de 2016.
Tais investimentos estão longe de combater as desigualdades sociais, ao contrário, as intensificam. De um lado, a especulação imobiliária e o redesenho da cidade, não favorecem aos mais pobres, que tem que buscar novas periferias, novas favelas, como no caso do Rio de Janeiro. Do outro lado, desviam fundos da área social para construção
de uma “marca” Brasil, que para tal, também se pode requerer um ordenamento territorial e policial, como nos processos de “pacificação” das favelas, que é uma das ações que tornou possível, lançar essa marca simbólica de “país potencia” que nada na abundância e não na desigualdade. Mas, existem outras razões, que tem mais a ver com um passado recente.
Jovens e não tão jovens sentem que um ciclo político nascido nos anos 80 tenha chegado ao seu limite. O final da ditadura foi acompanhado pela ascensão de organizações como PT, CUT, e MST, além de outros atores. No entanto, a bandeira de emancipação começa a não estar tão presente nos dois primeiros protagonistas. As políticas, primeiro de Lula e depois da Dilma, tiveram como objetivos, obter gestões melhoradas, para tanto, usou da criaçãode programas sociais conjunturais contra a fome e pobreza, ou invés demodificar as estruturas que reproduzem estas condições. Além do mais,promoveu a inserção do país como “potencia”, através de “campeonatosmundiais”, da presença estratégica de suas multinacionais nos países ao seuentorno ou em África no campo da globalização neoliberal. Não há critica(excessiva) em relação a este projeto político do PT e a sua evolução desta
forma nestes últimos anos. Os protestos no Brasil, então, supõem uma contestação destas práticas e uma busca por mudanças no ciclo politico: é um autentico “SãoPaulaço” (2 – Ver artigo Entre o “SaoPaulaço”, o parque Gezi e o 15M: variações dos novos movimentos globais
em Angel Calle Collado Autor de La Transición Inaplazable. Los nuevos sujetos políticos para salir de la crisis (Icaria, Barcelona, 2013). Um exemplo similar e inaugurador de critica frente ao neoliberalismo na América Latina foi o “Caracaço”: existe um projeto que não é popular e não esta legitimado socialmente. No entanto, os protestos brasileiros, ao contrário dos que os mexicanos e os da Espanha, não estão marcados (ainda) pelo “saiam todos”, ao estilo dos panelaços argentinos de 2001. A crítica e as propostas se mostram como características diferenciais do Brasil, pois são mais articuladoras, menos propensas a uma “guerra de guerrilhas”, a um desafio e a um questionamento mais amplo das autoridades governamentais. Assim poderia ser o caso dos protestos nas cidades e comunidades espanholas, marcadas por culturas “locais”, como o nacionalismo periférico, o anarquismo, as correntes libertárias ou a credibilidade nas
instituições mais próximas e não das distanciadas como a União Europeia, hoje refém da elite financeira neoliberal.
3. O Black Block constitui uma ferramenta de ação que se move de outros protestos, mais não constituem o coração das novas “safras revolucionárias”.
Efetivamente, nos recentes protestos ocorreu midiaticamente uma sobreposição dos grupos que se autodeterminaram como Black Block. De uma parte há a necessidade das elites de fazer com que os “iracundos” apareçam como geradores de “caos”, apesar de a violência ter sido sempre “simbólica” (objetos e não pessoas). O mesmo ocorreu na cumbre “antiglobalização”, vivida no final dos anos 90, particularmente desde os protestos de 1999 frente à Organização Mundial do Comércio, em Seattle (Estados Unidos). Isto em
parte também, pela novidade e efervescência manifestada pelos seus integrantes.
No entanto, como particularidade brasileira, os adeptos do Black Block manifestaram estarem mais identificados com táticas de protestos autônomos, de ações sobre símbolos capitalistas, que com identidades que os colocassem como herdeiros de tradições de autonomia política, como ocorre na velha Europa. Essas tradições de autonomia política ou social resgatam espaços de socialização e propostas ideológicas provenientes do anarquismo na Espanha ou da autonomia dos trabalhadores na Itália, os quais buscam fundar outros mundos, partindo de práticas de liberdade individual, mas antes de tudo, de
cooperação social, o chamado “apoio mútuo”. O Black Block europeu sempre esteve próximo, mesmo de forma geral, a estes protestos sociais, tanto em seu discurso, como ao mesmo tempo, na articulação de seus protestos “simbólicos”, por meio de ataques aos bancos e centros comerciais. Grupos anarquistas, centros sociais ocupados ou coletivos de autogestão de trabalhadores são referencias significativas em países mediterrâneos e na
Alemanha. Ao mesmo tempo, o que os distanciam nestes mesmos países de outras correntes de autonomia, como as experiências de anarcosindicalismo (mais enfocadas na construção do “poder popular” a nível social) ou das iniciativas de democracia libertária (onde a democracia direta ou mais radical se faz mais presente como sinal de identidade de suas propostas de transformação sociocultural). Neste sentido, o 15M no estado espanhol bebe
mais destas correntes libertadoras que de um anarquismo clássico.
Se o Black Block obteve todos os olhares, em minha observação, houve outros espaços mais relevantes para entender esses ciclos de protestos. O descontentamento entre a população não encontrou formas de manifestar-se através das “velhas” ferramentas. Voltam-se, então a se ver discursos e cenários já protagonizados por esses jovens (e não tão jovens) nas
convocatórias “Occupy”, que tiveram repercussão nas diversas cidades brasileiras. Sem dúvida, foi o movimento passe livre que semeou as demandas e as condições organizativas dos protestos, a raiz do êxito de suas reivindicações em cidades como Porto Alegre e, consequentemente da repressão contestada em São Paulo.
O descontentamento é global, não conjuntural: o Brasil é um país emergente no qual não emergem nem a democracia nem os direitos sociais. Quando me aproximei dos protagonistas destes protestos para entrevista-los, estes mencionaram muitos outros fatores que constituíam o descontentamento. Já os movimentos por moradia, como na Espanha “V de
Vivienda” ou posteriormente a Plataforma de Afetados pelo crédito de moradia, ajudaram a criar um clima de perda de direitos sociais que eclodiram no 15M. As diferenças entre os países são obvias. Nos países centrais, se tratam de preservar um estado de bem estar e possibilitar outras formas de democracia, dado o autoritarismo crescente das elites neoliberais. No Brasil se trata da construção de direitos, quando o país está direcionado para construção de estruturas da copa do muno e posteriormente das olimpíadas, isto quando os mortos, e um regime democrático superam, por exemplo, as cifras próprias dos
enfrentamentos armados de uma guerra como a da Líbia. No entanto, aqui também há diferentes cidades que oferecem diferentes suportes. Dessa maneira, no Rio de Janeiro os protestos de enfrentamento ao governador Cabral, ou também em outras cidades contra os gastos com a Copa do mundo, foram à ante sala da grande explosão de pessoas nas ruas no dia 17 de junho. Da mesma maneira, em outras cidades se destacaram outras lutas urbanas
(“uma periferia ativa”) coma as protagonizadas pelas favelas e o MTST em São Paulo. As ferramentas de “ocupar as ruas” de forma autônoma e frente às políticas “globalizadoras” estavam já sendo moldadas no Brasil, anos antes de 2013. Nos novos movimentos globais (globais por internacionalistas, encaixam as múltiplas necessidades básicas na busca de uma radicalização democrática do sistema, incluindo os partidos) não são “espontaneistas”, mesmo que, seu modo de operar se conceda grande peso e criatividade a reinvenção de formas de fazer política, desde o protagonismo social.
Mais que jovens iracundos, são “novos rebeldes”: constroem-se ideias e práticas para uma sociedade alternativa. De forma menos visível, tanto para os grandes meios como para a grande parte da esquerda clássica, existem uma serie de iniciativas sociais que vão
penetrando nas ideias resgatadas por Darcy Ribeiro: criticar a esquerda, para combater o sistema social. A crítica se dirige as construções alternativas a partir de um emaranhado de poderes que atuam num sentido contrario ao da emancipação das pessoas e comunidades: um capitalismo que quebra limites ambientais e sociais para nossa subsistência, um patriarcado percebido de forma crescente como autoritarismo e uma homogeinizaçao cultural
segregacionista e anglosaxona (as zonas definidas como fora da “barbárie” pelos centros “civilizados”, segundo Boaventura de Sousa Santos (3 – Una epistemología del Sur. La reinvención del conocimiento y la emancipación social, México, CLACSO y Siglo XXI, 2009). A tecnologia se tornou, em partes, aliada deste mundo financeiro depredador, que deixou de ser “convencional”, que diria Ivan Illich nos anos 70, para construir impérios de dominação com muita capilaridade, bem inseridos no cotidiano: desde o consumo globalizado, até a repressão em todo espaço publico suscetível de mercantilizar-se, passando pela educação cultural em estilos de vida competitivos e insustentáveis. É por isso que a contestação, especialmente entre os jovens “iracundos”, esta tomando como bandeiras, as práticas de economia solidárias mais contestáveis e favoráveis aos processos de cooperação social: fundos comunitários, fábricas ocupadas ou projetos de
controle territorial por parte de comunidades excluídas, a luta por soberania alimentar (mercados agroecológicos, cooperativas de produção e consumo) ou a construção de meios de comunicação e cultura comunitários (em bairros, comunas, favelas , assentamentos rurais), etc. Estes fenômenos que atraem na atualidade aos “jovens iracundos” é identificável tanto no Brasil como na Espanha. Como ocorria nos anos 70, criticam a sociedade consumista- produtivista, que não dá a felicidade. Nesse sentido, se aproximam aos novos
movimentos sociais (ecologismo, feminismo, autonomia política, direitos de minoria). No entanto, em sua contestação sistêmica (impugnando a política autoritária, as instituições capitalistas, a insustentabilidade global) se tornam irmãos ao movimento de trabalhadores, ao mesmo tempo em que, na América Latina ressoa neles os ecos sociocomunitários próprios de cada país. Assim, tão abertos, caminham sem projeto unitário, por enquanto, porque “caminham perguntando” como diria os zapatistas.
6. Os novos rebeldes revisitam a pedagogia de Paulo Freire.
Já estão ocorrendo em Brasil algumas assembleias de articulação entre organizadores populares, em uma linha não acompanha as clássicas plataformas de esquerda ou dos recentes fóruns locais. Tomando como exemplo a Assembleia Popular Horizontal de Belo Horizonte (bh.assembleias.org), lemos que “era necessário um espaço espontâneo,
aberto e horizontal de debate que permitisse o levantamento das reivindicações populares e a organização da pluralidade de vozes de forma coordenada para obter resultados concretos”. Os ecos do 15M, como afirma um militante, em relação a metodologias e formas de participação, me permite afirmar a existência de uma cultura política por de trás dos novos movimentos globais Nesta linha situaríamos também, organizações plurais e assembleias como Levante Popular de Juventude. (4 – Leer artículo de Bernardo Gutiérrez “Las asambleas populares reinventan la participación política n Brasil”,
[visitado el 30 de octubre, http://www.eldiario.es/internacional/asambleas-populares-reinventan-participacion-Brasil_0_184782265.html] ambientais de alcance planetário.)
Considero, portanto, que autonomia, redes horizontais e protagonismo social, serão sinais de identificação das futuras mobilizações. E o serão por estas dinâmicas emergentes, mas também pelo acervo sócio comunitário que constituem uma referencia da vida ativa e da política do Brasil. A pedagogia de Paulo Freire, o sentido territorial de algumas lutas (MST, MPA, Movimento dos Atingidos por Barragens, quilombolas, grupos indígenas em defesa de seu território, etc), a tradição emancipatória sócia comunitária ( e não a simples “cordialidade” brasileira) dos anos 60 e 70, junto com a presença de movimentos afro, campesinos e indígenas, são algumas das chaves que nos explicarão também o porquê desta busca a partir de ações coletivas e “desde abaixo”. Neste sentido, Brasil ou México realizam outras contribuições frente as matrizes mobilizadoras de 15M espanhol, as quais são mais individuais e libertarias, mais dirigidas em curto prazo que a construir processos de maior alcance. Em todos estes casos, o conceito de “dignidade”, na política e na economia, serve-lhes para irem conscientizando-se e construindo mais redes dialógicas. Estes jovens iracundos construíram “imensas conversas” na parte da sociedade que ficou de fora da agenda política, incluindo da esquerda, como aquilo que entendemos por democracia, que em diversos lugares se encontram presas a armadilhas; ou como enfrentar de forma local e global aos problemas
7. Os novos rebeldes, ainda com grandes limitações, falam de processos
políticos, antes de projetos partidários.
Se nos anos 70 as ideias dos jovens iracundos se prendiam às revoluções imediatas, trazida em muitos casos das mãos dos novos partidos, os novos rebeldes parecem reconhecer que se trata de um processo mais complexo, onde os partidos são ferramentas e não as peças centrais do tabuleiro politico. Jovens e não tão jovens estão se organizando de forma “apartidária”. Como afirmava um ativista: “o movimento está nas ruas, nas escolas, nos bairros”, só que “não pensamos em um modelo pronto, acreditamos que é um processo coletivo, tanto que trazemos isso para nossa própria organização” (5 – Ver número especial dedicado a este ciclo de protestas en la revista Caros Amigos, n. 196 institucionalizada e mediatizada (a política). Suas lutas ambientais, feministas, anti-capitalistas e “por um mundo em que caibam muitos mundos” (retomando ao discurso zapatista) são já expressões desses modelos, que sem duvida serão mais abertos a outros focos de poder, que de forma geral se centraram, nas ideologias do século XX. E suas práticas terão que transformar-se mediante ao calor destas reivindicações, de suas propostas de vida e da utilização de uma tecnologia que gere novas formas de vinculações sociais pelo mundo inteiro.
O mais preocupante para valorar as limitações destes novos movimentos é sua tendência de buscar “somas” e não “processos sociais”. Defino como a “política do e” como essa cultura política que busca a diversidade, os outros e outras, a construção a partir da complexidade. O 15M é um exemplo dessas formas de agregação cidadã, como também, em grande parte, os protestos no Brasil. As pessoas foram as ruas com seus cartazes expressivos e com atitude desconfiada, por não dizer beligerante, a respeito daqueles que portavam bandeiras. Este fato é positivo, pois os próprios protestos “dá voz” aos
descontentes, é uma mostra de uma “ágora física” que se mescla com “ágoras virtuais” que vão fortificando muitos protestos. Para um ativista destas mobilizações, com experiência em organizações sociais, essa foi a chave: “justamente porque eles fizeram de outro jeito, sem bandeirinhas, animando a expressão de cada um, isso fez com que as pessoas irem para rua”. No entanto, em algumas ocasiões esta capacidade de atração se detém aí.
Individualidades que se unem e logo deixam de relacionar-se. Critica expressiva, mas não uma insurgência social. Criação de afinidades, mas não de construção de projetos alternativos vitais. Ressoam aqui, essencialmente, os ecos de uma sociedade “líquida” (dita por Zygmunt Bauman), muita assimilada nas formas de relacionamento do Facebook. Esta dinâmica também pode ser visualizada na forma on/off de participação. Sujeita a apoios pontuais. As exceções não são minoria, porém, como pode ser demonstrado há
organizações mais estáveis e de referencias como o Movimento Passe Livre, que convocava novamente em outubro de 2013, uma semana de luta pelo transporte público, também como “meio de construção de outra sociedade”. Nem tudo são boas noticias. A “política do e” (mais agressiva, em forma de assembleias) atraem a atenção dos mais jovens, frente a “política do ou” (tradicionalmente, mais sectária, verticalizada na prática). Contudo, esta pode se transformar facilmente em “líquida”: aparece em ocasiões onde as contestações são mais expressivas na forma individualizada que as propostas coletivas de disputa do poder, no cotidiano (o politico) e na forma mais institucionalizada e mediatizada (a política).
8. Existe uma dificuldade para construir alianças e articulações sociopolíticas
no contexto de dispersão da esquerda e da fragmentação de vínculos sociais.
Não cabe duvida que no contexto brasileiro, muitas organizações do “projeto dos anos 80” vão propor rever suas bases e formas de ação social. O sindicalismo dos professores mexicanos exibe hoje formas de contestação que saltam as barreiras clássicas dos sindicatos de cogestão das políticas neoliberais. Isto está longe de ocorrer na Espanha. E no Brasil? No entanto, desde organizações rurais campesinas e indígenas, penso que o objetivo está em construir a democracia a partir da soberania alimentar e dos territórios,
como exemplificam neste ultimo caso os protestos campesinos em Colômbia. Aí está ocorrendo protestos que reúne uma demanda fortíssima de autogoverno e sustentabilidade em diferentes territórios, como a reivindicação de uma extensão de área de reserva (afro, indígena) ante aos próprios campesinos. Trata-se de produzir a partir de sistemas agroalimentarios locais e agroecológicos. Mas, isto também cria sinergias com o entorno urbano e com setores mais jovens, fruto das práticas dos novos movimentos globais. Assim,
no dia 26 de agosto, diversas cidades viram como centenas de pessoas saíram para as ruas e praças no que ficou conhecido como “panelaço” solidário, depois de oito dias de luta campesina.
Nem sempre é fácil esta criação de sinergias entre diferentes culturas e demandas políticas. Por exemplo, no Brasil, durante os protestos de junho, houve repertórios de ação que sucederam no tempo e que de alguma maneira se aproximaram das demandas das favelas com a dos novos jovens “iracundos”. Tal seria o caso da campanha cadê Amarildo?
Ou determinadas lutas por moradia e a ocupação de edifícios na cidade. Porém, a sucessão de repertórios esta longe de gerar sinergias entre estas novas redes e os protestos
já consolidados no Brasil de desigualdades. O território como espaço a ser defendido de forma ambiental e social, aparece como estratégia frente às formas de poderes capitalistas que tentam apossar-se de ecossistemas e mercantilizar vínculos sociais (7 –
Aqui me resulta estimulante conectar estas dinâmicas com as observações de Harvey sobre a necessária constituição territorial do capitalismo, de Silvia Federicci sobre o “cercamiento territorial” das mulheres como base da acumulação primitiva do capitalismo, ou os protestos de numerosas ecofeministas que situam o poder moderno com a
dissociação da vida (humana, do planeta quanto habitat) como centro da reprodução social.
autonomia”, como me dizia um cooperado). As lutas pela defesa dos “bens comuns”, sejam ambientais ou os que permitam a cooperação social (espaços públicos, tecnologia social e autogoverno), serão uma referencia de práticas para aqueles que queiram trabalhar a partir da interculturalidade e do dialogo entre rebeldes.
9. Esta nova esquerda é rebelde, porém, será também insurgente?
Esta “nova esquerda” que transcende a “esquerda clássica” ainda está por superar, como vemos nas ruas, dos momentos insurgentes dos protestos as dinâmicas insurgentes do seio da sociedade. Os obstáculos estão aí. A questão é de escala, é o de passar do político para a política: a dificuldade de construir iniciativas que possam ir além das “ilhas”, que possam ser referencia para população na hora de satisfazer as necessidades básicas. Outro assunto é a relação conflituosa com o estado. Em geral, sobre tudo no Brasil, não se
reprova, se não, que se questiona que “o apoio publico não sirva para a autonomia”, como me dizia um cooperado.
10. Os novos rebeldes propõem novas perguntas, não velhas respostas, essa é sua principal contribuição: as discussões sociais mudaram.
Todavia levarão alguns anos para que gasto como os da Copa do Mundo sirvam de motivo para protestos, porém e depois? Idealmente, a insurgência nas ruas dos “iracundos” deveriam consolidar processos nos quais os “novos rebeldes” praticam suas formas de vida e suas formas de fazer política. “Agora é momento de se organizar, depois das passeatas”, indicava um ativista. Mas se trata de uma organização diferente, inspirada como digo, nessa radicalização da democracia tanto de forma interna (organização) como de forma externa (demandas) dos protestos. E ao mesmo tempo em que a contestação nas ruas se consolida, seria necessário acompanhar esta construção com a difusão de ferramentas de participação e de alternativas econômicas e culturais para o conjunto de excluídas e excluídos. Todo um objetivo, que não só compete aos “novos rebeldes”. Precisamente, eles e elas veem evidenciando que temos que refazermos muitas perguntas, ao mesmo tempo, que construímos emancipações, antes de agir automaticamente ao compartilhar ou impor
respostas à sociedade. Trata-se, de dilemas próprios de movimentos e espaços cooperativos, que queiram construir democracias emergentes, de baixo para cima. Concluindo: os jovens iracundos voltaram para impugnar a velha política e os poderes autoritários estabelecidos. Quiçá o façam sempre, voltar e voltar. E sempre que voltam modificam o contexto. As lutas de hoje, são impossíveis de compreender sem as suas contribuições, geradas nas décadas de 60 e 70, como uma crítica a partir da autonomia, a concepção ampla e critica do poder, a denuncia de práticas patriarcais no sistema econômico, porém, também às próprias organizações sociais, a consciência ambiental e aos limites do planeta, etc. Daí, sua relevância. O mundo capitalista esta limitado pelo uso de recursos e por sua criação permanente de insatisfação social, o que não que dizer que
vá desaparecer a partir de si mesmo (dentro).
Como justifiquei no livro La Transición inaplazable, existe a possibilidade de uma transição dolorosa até campos próximos do fascismo sociais com o governo de elites atrincheirada em suas comunidades, apropriando-se dos bens de todos e todas. Os novos sujeitos políticos, estes novos rebeldes, herdeiros dos jovens iracundos, estão propondo outras formas de fazer política e outros tipos de sociedades. Sugerem uma transição humana. Esta “nova esquerda” se está aproximando a centralidade de alguns problemas de forma complexa, realidade extremante longínqua para processos revolucionários no século passado: construir sociedades a partir da diversidade, do protagonismo social e desde a sustentabilidade socioeconômica.
Artigo Original en Revista Desinformémonos
http://desinformemonos.org/2013/11/brasil-de-los-jovenes-iracundos-a-los-nuevos-
rebeldes/
tradução
http://www.deseosenelinsomnio.com/wp-content/uploads/2013/11/Dos-jovens-iracundos-aos-novos-rebeldes.-Portug.pdf