Em 6 de março de 2011, na Espanha, foi promulgada a “Lei Sinde”, pelo que ficou conhecida a disposição 43ª da Lei da Economia Sustentável (LES), — um diploma legal mais abrangente, em vigor desde 2009. Segundo o governo socialista encabeçado por José Luís Zapatero, a LES objetiva modernizar a economia espanhola, principalmente os setores financeiro, empresarial e do meio ambiente. Já a seção citada da LES, a Lei Sinde[1], visa a regulamentar a internet sob o paradigma da proteção à propriedade sobre o imaterial. Na ocasião, o projeto foi aprovado em consenso entre os partidos, unificando o espectro ideológico institucionalizado, num acordo das forças políticas ditas de esquerda (o governista Partido Socialista Operário Espanhol – PSOE) e de direita (o oposicionista Partido Popular – PP).
A campanha governamental pela Lei Sinde foi articulada politicamente pela ministra da cultura Ángeles González-Sinde. Nomeada por Zapatero em abril de 2009, a ministra defendeu que o novo dispositivo era indispensável para viabilizar a economia da cultura na Espanha. Isto não poderia ocorrer sem um efetivo controle estatal sobre os conteúdos circulantes na internet. O fundamento social da lei é que, descontrolada, a internet inviabiliza a exploração econômica da propriedade imaterial, com prejuízos irreparáveis ao desenvolvimento nacional, à geração de empregos, à taxação da atividade e à investigação de crimes cibernéticos. É curioso como, no preâmbulo da Lei Sinde, seja feita referência à crise financeira internacional, disparada em 2008 nos EUA. Para enfrentar a recessão, propõe-se reorganizar a economia espanhola a partir da propriedade intelectual, reconhecendo uma nova fase de oportunidades de desenvolvimento para o país, imposta pela própria dinâmica contemporânea do capitalismo.
Basicamente, num cenário de centralidade do valor imaterial, — logo cultural, na acepção de cultura como processo social imanente de criação, combinação e propagação de valores[2] — dos produtos e processos, torna-se estratégico ao estado disciplinar o fluxo de informações, conhecimentos, músicas, imagens, livros, de todo o tipo de conteúdo passível de apropriação e lucro sob o modelo do copyright. Efetivar o direito autoral e impedir a cópia livre garantiriam a sustentabilidade de um setor econômico dilapidado pela ação generalizada dos piratas virtuais.
Não admira ter se constituído em 2008 uma associação formada pelas grandes empresas culturais e as sociedades de gestão dos direitos de autor (isto é, escritórios para a cobrança sistemática), a “Coalizão dos Criadores”. Nos últimos três anos, esse grupo de pressão conquistou amplo espaço na mídia espanhola, propagando um discurso que buscava apresentar uma suposta aproximação entre o “crime organizado” e o compartilhamento em redes P2P (“ponto-a-ponto”, via programas como emule outorrent), o download direto e o streaming.
Na prática, a Lei Sinde estabelece a prerrogativa de o governo requerer informações pessoais de usuários aos prestadores de serviços da internet, — servidores e companhias de telecomunicações, — quando da suspeita/denúncia de violação de direitos relativos à propriedade sobre o imaterial. Confere ao ministério da cultura a competência para exercer um papel por assim dizer de polícia autoral, a fim de fiscalizar e zelar pelo patrimônio de terceiros. Na prática, mediante uma comissão de especialistas, o ministério espanhol poderá “adotar as medidas necessárias para que se interrompa a prestação de um serviço que vulnere direitos da propriedade intelectual, ou para remover os conteúdos que vulnerem os citados direitos (…)”.
Mais do que uma decisão circunscrita à realidade espanhola, a entrada em vigor da Lei Sinde se integra ao marco regulatório da internet dos estados-nações da Eurozona. Com efeito, a Lei Sinde nacionaliza uma diretiva aprovada quase por unanimidade (510 a favor, 49 contrários) pelo Parlamento Europeu, em novembro de 2009[3]. De fato, o ímpeto legislativo espanhol não destoa de seus correspondentes francês[4] e britânico[5]. Nessa resolução, no âmbito do novo “Pacote das Telecomunicações” para a União Européia, autoriza-se o corte do acesso a usuários que violem os direitos autorais. Um dos pontos mais polêmicos dessa decisão-quadro européia consiste em dispensar a prévia autorização judicial para a sanção, dando celeridade ao processo administrativo e menos recursos — ou praticamente nenhum — ao cidadão usuário.
Outra peça importante do quebra-cabeças foi revelada pelo Wikileaks, a partir da publicação de documentos sigilosos (os cables) da diplomacia americana. Segundo a reportagem do El País[6], o governo americano de Obama pressionou o governo espanhol de Zapatero por um endurecimento na política de controle da internet e do fluxo de conteúdos protegidos pela propriedade. Em síntese, a embaixada norte-americana ameaça o governo espanhol de incluir a Espanha numa “lista negra” do comércio exterior, devido à postura negligente e condescendente com a pirataria e o uso livre da internet. E sugere que o premiê espanhol siga o exemplo de seu colega francês, Nicolas Sarkozy, adotando uma postura mais inflexível.
É sintomático que os Estados Unidos, — abrigo dos maiores conglomerados da indústria cultural do planeta, — acuse o governo de Zapatero de “promover uma política cultural através da internet”. Os cables desencobertos pelo Wikileaks também revelam como a embaixada americana coordenou-se em sua campanha com grandes empresas das telecomunicações, como a Telefônica, bem como mega-distribuidoras de filmes, como a Motion Pictures.
Por um lado, a promulgação da Lei Sinde reproduziu a tendência européia, quiçá mundial, de enrijecer a disciplina estatal sobre a internet e, tendencialmente, punir o compartilhamento e a circulação livre de conteúdos. Por outro, no entanto, o que sucedeu na Espanha, como resposta social à nova legislação, adquiriu um caráter inédito e singular. Imediatamente depois da aprovação da Lei Sinde, intensificou-se uma mobilização já ativa desde o anteprojeto. Tendo começado vigorosamente nas redes sociais e coletivos virtuais, o movimento não demorou a transbordar nos espaços públicos.
Em abril de 2011, ocorreram várias passeatas a favor do “Manifesto em defesa dos direitos fundamentais da internet”[7]. Redigido coletivamente, o documento discorda da política dos estados europeus em reprimir a cópia livre e controlar a internet, sustentando em contrapartida “uma verdadeira reforma do direito de propriedade intelectual orientada à sua finalidade: devolver à sociedade o conhecimento, promover o domínio público e limitar os abusos das entidades gestores [dos direitos autorais]”.
A indignação ante a Lei Sinde alimentou a insatisfação contra o governo Zapatero e, em última instância, contra o sistema político-eleitoral como um todo. Solapado de bases sociais pela incapacidade de evitar que os cidadãos pagassem a conta pela crise financeira, a revolta diante da Lei Sinde lançou ainda mais centelhas sobre o barril de pólvora da sociedade espanhola. Já antes da promulgação, desde pelo menos 2007, grupos como o Partido Pirata e a Izquierda Unida se contrapunham vigorosamente às tentativas de estados esquadrinharem policialescamente a internet e criminalizarem os seus usuários. Contudo, com a aprovação da Lei Sinde, a partir de março de 2011, praticamente todos os movimentos sociais e/ou organizações ativas de esquerda incorporaram os direitos da rede, o compartilhamento e o livre acesso à cultura via internet, como pautas centrais.
Na medida em que o trâmite legislativo reuniu esquerda e direita partidárias (PSOE e PP), ganhou força o movimento autonomista, que passou a rejeitar em bloco o sistema representativo e sua dinâmica bipartidária no país. O principal aglutinante desse clima de desencanto deu-se com o movimento #NoLesVote, que promoveu a abstenção nas eleições gerais de maio. A oposição à Lei Sinde contribuiu significativamente para engrossar o caldo político-cultural, que viria a culminar no Movimento de 15 de maio (15-M).
A multidão de indignados saiu às ruas, ocupou intensivamente as praças e reinventou modos de produzir e organizar-se numa política cidadã[8]. Clamou por democracia real já, slogan principal dos protestos, logo disseminados por centenas de cidades européias e além. Entre as propostas concretas do movimento, destaca-se: “7. Liberdades Cidadãs. Não ao controle à internet. Abolição da Lei Sinde. Proteção da liberdade de informação e do periodismo de investigação.”[9]
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No Brasil, há muitas semelhanças com o processo histórico em curso a partir da Espanha. Desde que tomou posse, em 1º de janeiro de 2011, como ministra do governo Dilma Rousseff, Ana de Hollanda tem atuado de maneira similar à sua colega espanhola, a ministra Sinde. Com Hollanda, o MinC igualmente se colocou como pivô para uma campanha política que privilegia a lógica proprietária na cultura, marcada fortemente pelo direito autoral. Sob o argumento que não há alternativa ao modelo capitalista concentrador neoliberal, seria preciso assegurar a vedação da cópia e a exploração da propriedade sobre o imaterial. Somente assim se poderia deflagrar um novo ciclo de aproveitamento das oportunidades do capitalismo pós-industrial, com consequentes geração de empregos e substituição das importações, — ou seja, um novo ciclo de exploração do trabalho agora imaterial.
Foi sintomática, em janeiro, uma das primeiras medidas: a esconjuração por Ana de Hollanda dos sites do ministério do selo Creative Commons, — uma licença mais aberta que o copyright tradicional, assumida como estratégica no governo anterior[10]. Demais, a ministra assumiu uma postura de desconfiança sistemática ante os programas instaurados pela gestão de seus predecessores, durante o governo Lula (2003-10).
Foram seguidamente colocadas para escanteio pelo discurso oficial, as políticas culturais baseadas no compartilhamento de conteúdos e gestão transversal em rede, sob as legendas da “Cultura Viva” e “Cultura Digital” (Pontos de Cultura, Pontos de Mídia Livre, Ação Griô, editais transversais etc). Em praticamente todas as aparições públicas, a ministra e os novos gestores enfatizaram a necessidade de assegurar os direitos autorais e a sustentabilidade. Por este último termo, referiu-se à importância de investir recursos em indústrias culturais nacionais já estabelecidas, que empregam profissionais e são capazes de autossustentar-se (apesar da contradição gritante do raciocínio), bem como de integrar novos setores criativos (gastronomia, videogame, design, decoração etc) ao paradigma da propriedade imaterial.
Em suma, a chegada da ministra Ana de Hollanda simbolizou a substituição do discurso da cultura livre e digital, — tão arraigado nas gestões de Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10), — pelo da economia criativa[11], um modelo herdado do governo neoliberal de Tony Blair nos anos 1990, que organiza a atividade econômica cultural na exploração do copyright.
Enquanto, na Espanha, existe a “Coalizão dos Criadores”, aqui há o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). Instaurado na época da ditadura pela Lei n.º 5.988, de 1973, essa instituição privada de gestão coletiva monopoliza a exploração da propriedade intelectual na música. Constituído por uma tropa de choque de advogados, fiscais e relações públicas[12], o ECAD tem o poder de estabelecer critérios e tabelas de cobrança, e efetivamente cobrar a exibição pública de músicas – supostamente limitando-se àquelas inscritas sob seu registro. Isto vale em espetáculos ao vivo, estabelecimentos comerciais[13], nas TV, nas rádios, no cinema[14], em peças de teatro, no youtube, em blocos de carnaval de rua, e até em festas particulares, como casamentos e aniversários.
Em 2010, o ECAD bateu o recorde de arrecadação, na casa das centenas de milhões de reais, dos quais R$ 346 milhões foram distribuídos aos autores. A sistemática para a distribuição também é decidida “soberanamente” pelo ECAD, ou seja, num processo interno sem supervisão estatal direta, onde as seis sociedades gestoras efetivas[15] repartem os ganhos. O processo de arrecadação e distribuição termina por privilegiar uma minoria de medalhões fabricados pela indústria cultural, em detrimento da cauda longa de artistas, produtores e trabalhadores da cultura, que não recebem quase nada ou precisamente nada. Como, amiúde, os estabelecimentos e shows repassam a taxa de direitos autorais aos próprios artistas, o sistema brasileiro acaba funcionando como um “bolsa família ao contrário”, concentrando renda no topo da pirâmide do show business.[16]
Assim como seu correlato na Espanha, o ECAD integra unha-e-carne a campanha contra a democratização da cultura e o compartilhamento livre na internet. Não por acaso, a reforma da Lei de Direitos Autorais (LDA) brasileira, — a Lei n.º 9.610, de 1998, extremamente rígida e herdeira dos anos FHC, — foi retirada da tramitação legislativa pela ministra. Alegando insuficiente consulta pública, apesar do extensivo processo presencial e online de debate e formulação[17], a atual ministra resolveu submeter novamente o projeto a uma comissão de especialistas jurídicos (mais uma vez em contradição argumentativa), a fim de rever a flexibilização dos direitos autorais[18]. Enquanto isso, designou como nova diretora de direitos autorais uma advogada notória opositora à flexibilização dos direitos autorais, ligada ao ECAD[19]. Até a presente data, a reforma encontra-se obstruída em impasse político, de qualquer modo atendendo à agenda conservadora do MinC do governo Dilma.
Se, na Espanha, a Lei Sinde adensou a mobilização das redes até o ponto de ebulição do 15-M, colocando em marcha pessoas e grupos até então alinhadas ao PSOE de Zapatero; no Brasil, também houve uma sonora resposta social, inclusive dividindo fileiras dentro das próprias bases sociais do governo. As primeiras atitudes do MinC sinalizando a nova orientação movimentaram as redes sociais e coletivos político-culturais[20]. Circularam textos e discursos, articularam-se alianças e contratendências, para opor-se à guinada política do ministério[21]. Centenas de coletivos, organizações e ativistas assinaram uma Carta Aberta à Presidenta Dilma Rousseff[22] pedindo a continuidade e retomada das agendas político-culturais do governo anterior. Na esteira dessa carta, foi lançada a rede MobilizaCultura[23], que hoje reúne insatisfeitos e concentra as ações de resistência aos rumos conservadores do governo. A pauta da cultura livre terminou por alimentar um ciclo de passeatas no primeiro semestre de 2011, especialmente a Marcha da Liberdade, organizada em mais de 40 cidades brasileiras[24]. Nesse contexto de protestos ao novo MinC, merecem ainda ser citadas as caravanas dos Pontos de Cultura à Brasília, a ocupação da FUNARTE em São Paulo, e a pressão pela instauração de uma nova CPI para investigar a falta de transparência e cartelizarão do ECAD. O que, de fato, se concretizou no Senado Federal, em junho, contando 27 assinaturas de senadores[25].
Se é possível apontar uma distinção positiva entre a Espanha e o Brasil, está no fato de o governo brasileiro, ao contrário do espanhol, não ter encampado o discurso vigilantista de criminalização dos cidadãos na internet. Por aqui, a tentativa de identificar e punir os usuários de download, streaming e compartilhamento P2P é capitaneada pela oposição. Trata-se do projeto retomado em junho deste ano pelo deputado federal Eduardo Azeredo, do PSDB[26], especialmente em virtude dos recentes ataques à sítios eletrônicos de órgãos do governo brasileiro, enfrentando massivo movimento organizado de resistência, sob o slogan Mega-Não[27].
Na mesma esteira da legislação espanhola, o projeto de lei, que ficou conhecido como “Lei Azeredo”, estabelece a obrigatoriedade dos provedores de acesso àinternet manterem um registro das informações trocadas através de seus sistemas e até mesmo de comunicar às autoridades estatais qualquer informação em seu poder que traga indícios de um possível crime, em uma clara violação à privacidade dos usuários de tais serviços, além de tornar ilegal a recente e importante prática de certos governos de se criar redes públicas de acesso sem fio (o “wi-fi”).
Além de trazer uma vigilância permanente sobre as trocas de informações pela rede mundial de computadores, a “Lei Azeredo” acrescenta diversos novos crimes ao já extenso rol de delitos previstos pela legislação penal brasileira e sem atenção as particularidades do mundo da informática. Exemplificando, a mera produção do chamado “código malicioso” é punida com pena de um a três anos de prisão, embora esta criação faça parte de pesquisa na área de segurança de sistemas examente com o intuito de prevenir ataques que de fato visem a produção de danos concretos. Destaca-se que a lesão corporal, prevista no Código Penal, traz uma pena de três meses a um ano. Ou seja, para o legislador seria mais grave criar um código que poderiam, em tese, ser utilizado para produzir danos a sistemas informacionais que lesionar a integridade física de uma pessoa.
Apesar do impulso inicial dado ao projeto em virtude dos ataques mencionados e da cultura do medo diante das potencialidades da internet, repercutida principalmente pela grande imprensa, a “Lei Azeredo” ainda não reuniu o consenso entre esquerda e direita, como sucedeu com a Lei Sinde. Em audiência pública realizada em julho na Câmara dos Deputados, parlamentares da base defenderam a necessidade de se aprovar o Marco Civil da Internet antes que se passasse uma lei criminalizando condutas praticadas através deste meio e seu projeto foi encaminhado para a Câmara em agosto do presente ano.[28].
O projeto de Marco Civil, diferentemente da “Lei Azeredo”, garante a inviolabilidade e o sigilo das comunicações via internet, apesar de deixar aberta a possibilidade para que outras leis regulem o fornecimento dos registros de conexão para autoridades estatais, como o faz a “Lei Azeredo”. Resta ver qual será o futuro deste recente debate legislativo e pressionar para que o resultado final não seja a mera incorporação dos interesses do capital transnacional na legislação nacional.
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Mais do que um problema jurídico complexo, o que está em jogo na questão dos direitos autorais ou, mais amplamente, na propriedade sobre o imaterial, é a própria forma de organizar a sociedade e seu modo de produção de bens e valores.
De um lado, um modelo que privilegia a separação da produção social em lotes e mercadorias, com preço, devidamente quantificadas pelo dinheiro, exploradas oligopólica e sistematicamente por grandes conglomerados e empresas. É o discurso “cultura & mercado”, pra quem a economia da cultura constitui um “setor” e seus trabalhadores uma “classe”, encabeçados pela superior “classe artística”. Estratégia que induz a escassez para vender a monocultura.
Esse discurso amolda-se a uma nova matriz do capitalismo global, — concomitante às matrizes industrial e agrário-feudal, ainda incidentes — baseado na exploração do trabalho imaterial e na captura da produtividade difusa, imanente às redes sociais (online ou não) e à colaboração transversal.
Trata-se da reedição de uma forma jurídica desenvolvida na baixa idade média, a propriedade privada, sob nova roupagem e nova direção. Mutatis mutandis, assim como o estado e o direito estatal foram os principais catalisadores para a cultura proprietária, primeiro europeia, depois planetária — quer na sua salvaguarda quase sagrada, quer na exploração do trabalho combinado social — atualmente, a propriedade sobre o imaterial passa pelo mesmo processo de formalização jurídica e repressão estatal.
Isso porque, conforme Marx[29], a conversão do dinheiro em capital e a extração de mais-valor pressupõem a concentração quantitativa de meios, recursos e força de trabalho, nas mãos de quem comanda o processo de produção, bem como a construção de um aparato político-jurídico que sustente o conjunto. Para tanto, é necessário que, em dado momento, essa convergência de capital e força de trabalho nas mãos de poucos capitalistas aconteça. É o que Marx chama de “acumulação primitiva”: a separação do trabalhador das condições materiais para produzir. O filósofo procura demonstrar que não foi uma transição pacífica, mas um desapossamento sistemático. Isto induziu uma situação de precariedade, onde a população vadia se via constrangida a vender-se a si próprio, — a sua capacidade produtiva, — como mercadoria, ou seja, ingressar na relação social entre o capital que comanda e o trabalho subordinado. Bem ao contrário, os trabalhadores que se libertaram da servidão e da coerção corporativa tornaram-se comerciantes de si mesmos: “depois que lhes roubaram todos os seus meios de produção e os privaram de todas as garantias que as velhas instituições feudais asseguravam à sua existência”[30], num violento processo expropriatório.
Pode-se perceber, então, que a acumulação primitiva tem lugar no momento de transformação da exploração feudal em exploração capitalista e se desdobra em diversos processos sociais opressivos e desiguais: “deslocamentos de grandes massas humanas, súbita e violentamente privadas de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como levas de proletários destituídas de direitos.”[31] Neste momento, surge o pauperismo como conseqüência do processo de acumulação primitiva e de expropriação violenta do lavrador. A enxurrada de pobres nas cidades se tornou um grave problema social, diretamete decorrente da divisão social do trabalho introjetada pelo regime capitalista de acumulação.
Em síntese, a classe dominante emergente forja os meios necessários para coagir a fração majoritária a uma situação de inferioridade estratégica, onde as relações de poder mediadas pelo estado passam a exercer o papel de controle social.[32] Atualmente, do mesmo modo que o direito foi posto pra consolidar gigantescas propriedades agrárias ou industriais, — latifúndios ou cartéis fabris internacionais, — agora se tenta instaurar uma nova Lex mercatoria, de dimensões civis e penais, capaz de assegurar o funcionamento do capitalismo contemporâneo, sua divisão excludente do trabalho e seu regime desigual de acumulação de bens e riquezas.
Como defendia o jurista da revolução russa, Eugênio Pashukanis, não adianta simplesmente ocupar as instâncias estatais para conferir-lhes um sentido libertador. Faz-se necessário desarticular as próprias estratégias de mercantilização e privatização, intrínsecas ao direito vigente, que precisam das categorias, formas e institutos estatais. Neste sentido, imprescindível restar claro que a disputa não é pelo conteúdo das leis que regularão a propriedade imaterial; ao contrário, a luta é pelo questionamento do próprio tratamento legislativo-jurídica da propriedade imaterial, em nome de sua proteção e lucratividade. Afinal, a crítica deve recair especialmente naforma (no sentido dialético emprestado por Marx, como momento qualificado do processo dinâmico de contradições internas) da regulação legal, para além dos conteúdos das leis.
Nesse sentido, a importância de investir no outro lado desse jogo antagonístico. Se o movimento dos indignados 15-M ensina algo, é como começar a constituir uma democracia fora dos critérios e parâmetros viciados da representação moderna, asfixiada, — pelo menos certamente na Europa, — entre uma direita fascistizante e uma esquerda desenvolvimentista. Uma resposta estaria em apostar no menos pior entre os mundos da representação. Outra, mais radical, mais pashukaniana, pode ser considerar as duas piores, e apostar noutro modo de produzir e viver a liberdade.
É aí que o outro mundo surge como inovação radical, onde se resiste produzindo o comum das relações, compartilhando, remixando, reconstruindo as narrativas sociais e políticas. Uma outra modernidade, onde a cultura não é um setor, um mundinho, e o artista não é um profissional, uma “categoria”; mas sim onde a cultura qualifica o mundo, e onde todos somos criadores-produtores de todas as categorias sociais. A cultura é mesmo transversal a todos os processos sociais e não há dinheiro capaz de quantificá-la na sua qualidade irredutível, no seu excesso social sempre em transbordamento das mercadorias e propriedades.
Por isso, outro ensinamento do 15-M está em mostrar como a forma comum de organizar e produzir, própria das redes colaborativas da cultura, tem aplicação imediata no movimento social. Pode-se vislumbrar, nesse sentido, a articulação das marchas da liberdade de 2011, tão afinadas com as lutas LGBT, feministas e pela legalização das drogas, com movimentos sociais mais “duros“, como da moradia, do trabalho informal, das cotas raciais/sociais na educação pública.
Em conclusão, é certo que não é mais possível, hoje, acatar passivamente um discurso insultante que adjetiva milhões de internautas como criminosos. Por terem a audácia de compartilhar livremente o saber socialmente produzido, por nutrirem a utopia de viver num mundo em que não se precise de mediações entre os valores e os produtores de valores. Como se fossem apenas obscuros coletivos hackers ou oportunistas piratas a fazer download de músicas e filmes, xerocar livros e recombinar incessantemente todo o tipo de conteúdo cultural. E não a própria sociedade, que constituiu nas redes um movimento social irrefreável e irreversível, com autonomia global, organizado sem centro, sem bandeira, sem discurso unificado, mas nem por isso menos potente ou efetivo.
Rio de Janeiro, 28 de agosto de 2011.
GRUPO DIREITO DO COMUM.
REFERÊNCIAS:
(somente as não citadas nas notas de rodapé)
BOUTANG, Yann Moulier. Capitalisme cognitif. La nouvelle grande transformation. 1a ed. Paris: 2008, ed. Multitudes.
COCCO, Giuseppe. A crise do MinC no governo Dilma: levar a sério a questão do valor. 2011, artigo in Revista Global Brasil n.º 14
http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=676
CRIBARI, Isabella (org.). Produção cultural e propriedade intelectual. 1a ed. PE: 2005, Massangana (Fundação Joaquim Nabuco).
LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabalho imaterial. 1a ed. RJ: 2001, DP&A.
MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política. Trad.: Mario Duayer (supervisão editorial e apresentação), Nélio Schneider, Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman, 1a ed., SP: 2011, Boitempo.
ORTELLADO, Pablo. Capitalismo e cultura livre. 2011, artigo in blog pessoal: (http://www.gpopai.org/ortellado/2011/06/capitalismo-e- cultura-livre/)
PASHUKANIS, Eugênio. Teoria geral do direito e marxismo. SP: 1989, Renovar.
[1] A Lei Sinde pode ser consultada na íntegra em http://boe.es/boe/dias/2011/03/05/pdfs/BOE-A-2011-4117.pdf (p. 190 e ss.)
[2] Para a concepção social e socializante de cultura, professada pelo presente texto, remetemos aos artigos de Idelber Avelar, na Revista Fórum (http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2011/07/04/sobre-o-conceito-de-cultura/) e Rodrigo Guéron, na Revista Global Brasil (http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=756)
[3] Conforme reportagem do El País: http://www.elpais.com/articulo/tecnologia/Parlamento/Europeo/aprueba/unanimidad/directiva/acceso/Internet/elpeputec/20091124elpeputec_5/Tes
[4] http://www.lavanguardia.com/internet-y-tecnologia/noticias/20090512/53701782923/francia-aprueba-la-ley-para-cortar-internet-a-quienes-realicen-descargas-ilegales.html
[5]http://www.elpais.com/articulo/internet/Reino/Unido/estudia/aplicar/canon/conexiones/banda/ancha/elpeputec/20090129elpepunet_6/Tes
[6]http://www.elpais.com/articulo/espana/EE/UU/ejecuto/plan/conseguir/ley/antidescargas/elpepuesp/20101203elpepunac_52/Tes
[7] http://www.rtve.es/contenidos/documentos/derechos-fundamentales-internet.pdf
[8] Sobre as formas de organização e decisão internas às ocupações, vale a leitura do artigo do filósofo italiano autonomista Antônio Negri, quando de sua vivência pessoal dos acontecimentos, disponível em versão traduzida no portal Outras Palavras:http://www.outraspalavras.net/2011/06/08/15m-redes-e-assembleias-por-antonio-negri/
[9] O “Documento Transversal” com as propostas completas do Democracia Real Ya!em http://www.democraciarealya.es/documento-transversal/
[10] Sobre o assunto, contestando a concepção que o Creative Commons atrapalha o interesse da cultura nacional, o artigo de Pablo Ortellado em seu blog:http://www.gpopai.org/ortellado/2011/02/os-nacionalistas-da-cultura-%e2%80%9ccreative-commons-e-entreguismo%e2%80%9d/
[11] A diferença de paradigma entre o MinC dos governos Lula e Dilma é o tema de dois artigos aqui sugeridos, que contrapõem economia criativa e cultura livre/economia social da cultura: http://www.gpopai.org/orthttp://www.mobilizacultura.org/2011/05/13/de-que-ana-de-hollanda-tem-medo/ellado/2011/04/a-economia-criativa-e-a-economia-social-da-cultura/ (por Pablo Ortellado) e http://www.mobilizacultura.org/2011/05/13/de-que-ana-de-hollanda-tem-medo/ (por Bruno Cava). Também recomendamos o artigo de Bárbara Szaniecki e Gerardo Silva ao Portal Outras Palavras, sobre a aplicação do modelo da economia criativa da cultura, no Rio de Janeiro: http://www.outraspalavras.net/2010/09/28/rio-dois-projetos-para-uma-metropole-conhecimento/
[12] A “taxa de administração” consome uma fatia próxima dos 30% do total arrecadado em todo o Brasil, uma proporção que vem crescendo ao longo dos anos.
[13] Inclusive as músicas ambientais, as “musiquinhas” que tocam em consultórios, academias, hotéis, mercados etc.
[14] À taxa de 2,5% sobre todos os ingressos vendidos em território nacional, como informam os próprios bilhetes.
[15] Das quais duas mantêm maioria absoluta, mais de 60% da participação e poder decisório: a União Brasileira de Compositores (UBC) e a ABRAMUS (Associação Brasileira de Música e Artes), que, por sua vez, sofrem influência, senão ingerência direta, de seus grandes clientes, os Big Four da indústria cultural americana: Sony, Warner, EMI e Universal (onde cai por terra qualquer associação do ECAD e da atual LDA aos “interesses da cultura brasileira“). Boa síntese do quem é quem no ECAD no blog de Flávio Loureiro: http://blogdoflavioloureiro.blogspot.com/2011/02/quem-e-quem-no-ecad.html
[16] Sobre a “cartelização” do ECAD, artigo da Revista Carta Capital de agosto de 2011: http://www.cartacapital.com.br/politica/ministerio-da-justica-aponta-atuacao-cartelizada-do-ecad
[17] Consultar, por exemplo, http://www.gpopai.usp.br/cm/
[18] Vale remetermos a ainda outro texto de Pablo Ortellado, em crítica à reapreciação do projeto, sob novas regras, pelo MinC: http://www.gpopai.org/ortellado/2011/04/revisao-da-revisao-governo-de-continuidade/
[19] http://www.movimentoculturabrasil.com.br/blog/?p=3853
[20] Bom resumo dos primeiros embates entre as posições políticas foi compilado por Rodrigo Savazoni, em http://www.trezentos.blog.br/?p=5580
[21] Bastante sintomático da oposição “interna” aos retrocessos do MinC do governo Dilma foi o artigo a quatro mãos, pela deputada federal Manuela D´Ávila (PCdoB/RS) e Francisco Solaña, do Gabinete Digital do governo gaúcho de Tarso Genro (PT):http://www.trezentos.blog.br/?p=5707
[22] http://www.mobilizacultura.org/site-em-construcao-2/carta-a-excelentissima-presidenta-dilma-roussef/
[23] http://www.mobilizacultura.org/
[24] http://www.marchadaliberdade.org/
[25] http://www.mobilizacultura.org/2011/05/11/conheca-os-27-senadores-que-assinaram-pela-abertuda-da-cpi-do-ecad/
[26] http://www.cartacapital.com.br/politica/o-ai-5-digital
[27] http://meganao.wordpress.com/
[28] Texto completo do projeto de lei em http://www.gpopai.org/ortellado/wp-content/uploads/2011/08/marco_civil.pdf Para uma discussão crítica preliminar do tema, sugerimos outro texto de Pablo Ortellado, em seu blog: http://www.gpopai.org/ortellado/2011/08/rapido-comentario-sobre-a-versao-final-do-marco-civil-da-internet/
[29] Marx. O Capital (Rio de Janeiro, 2009), p. 827-830.
[30] Ibid. p. 829
[31] Ibid, p. 830.
[32] Quinney. Critique of Legal Order (Londres, 2002), p. 98.
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Produção coletiva do grupo militante DIREITO DO COMUM, boa leitura.
fonte: http://andrebarrospolitica.blogspot.com/
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