Tudo começou em Medellin, Amazônia colombiana. Em um encontro de labs de mídia chamado Labsurlab [1] conhecemos Antena Mutante e Pablo de Soto que realizavam uma oficina de vídeo cartografia pelas periferias da cidade mapeando situações de conflito social como greve de estudantes, narcotráfico, resistência cultural via hip hop etc. A cartografia procurava criar novas leituras sobre a cidade, principalmente sob a perspectiva da resistência por trás de tantos conflitos de terra, paramilitares, presxs políticos, jovens sendo assassinadxs, situações de crise que, mesmo tendo seus momentos de pico máximo (como em Operações muito parecidas com as UPPs só que com número considerável de assassinatos e maquinaria de guerra), ainda hoje predomina. Depois disso, iniciamos Diálogos Convergentes desde el Sur uma troca de e-mails entre coletivos linkando mais outros espaços: Bogotá, Madrid, Rio de Janeiro, Cali… conjurando um encontro na Amazônia e no Rio de Janeiro que desse continuidade ao trabalho iniciado na Colômbia mas com características locais, como inevitavelmente seria.
Nos juntamos assim à iniciativa Hacklab – Por uma cartografia crítica da Amazônia [2] onde houve uma segunda convergência desta rede ampliada. De 4 a 7 de agosto nos reencontramos eu e Pablo em Belém junto a Felipe Fonseca, Paulo Tavares e Ricardo Folhes, não-locais, e aproximadamente 40 pessoas de diversos coletivos artísticos, midiáticos, produtores culturais, etc da cidade. Um próximo encontro está agentado para o fim de agosto, novamente em Belém e Santarém, mais a etapa carioca que se inicia em setembro. [3]
Chegando em Belém com o primeiro combo, sob o calorzão da cidade e abrigados no Casarão Cultural Floresta Sonora, [4] no centro da cidade, nossos anfitriãos nos levaram à Feira do Açaí, no mercado público Ver-o-peso, onde fui logo roxear minha boca (de açaí com farinha). Na casa, um espaço coletivo, ouvíamos um guitarreiro local sendo gravado e aos poucos fomos conhecendo diversas iniciativas de intervenção urbana, design, cinema, rádios livres, performers, permacultores, músicos…
A última vez que cheguei em Belém – prá ficar e de bicicleta – já tinha sido uma experiência intensa. Essa também não poderia deixar de ser, mergulhando numa imersiva de re-conhecimentos. Passamos 3 dias em um parque de igarapés nos apresentando e achando pontos de união e conflito entre nossas práticas, de forma espontânea, sem horários rígidos ou programação vertical. Uma ZASF (zona autônoma sem fio) foi montada e nesse espaço comum, wikka e pastas, fomos nos inserindo. Falamos sobre a desconectividade amazônica, gênero, licenças livres, cartografias, megaprojetos x comunidades locais, a idéia de amazônia para o mundo, américa latina, entre outros temas. A pirataria de softwares parece ser tão bem incorporada aqui que reflete em muito pouco ou quase nenhum uso do software livre – apenas por integrantes do coisa de negro que estavam justamente atrás de uma distribuição linux.
À noite participamos de múltiplas performances no igarapé, mergulhos em redes e troca de arquivos por bluetooth com o público, e até um susto com os seguranças – que seguram pedro ao vê-lo puxando sua companheira de cena pelos cabelos e jogá-la numa caixa – tanto a performace como os vídeos disparados por celular falavam da violência contra a mulher.
Diante de trabalhos tão instigantes, muitos sem nenhuma conexão direta entre si, mesmo que mergulhados num mesmo contexto, a cartografia pode servir como norte alinhavador de ações colaborativas emergentes. Assim como não há net mas uma cultura digital subterrânea que se comunica eficientemente por troca de arquivos p2p via celulares, filmes e performances, essa rede também pode ser fomentada por iniciativas como o Hacklab Belém, que trazem diferentes ações para se conhecer e refletir sobre os próprios territórios e características políticas, sociais, culturais, criando um lugar-tempo comum. Ali todxs nos tornamos metarecicleiros, feministas, ribeirinhxs. Só faltou mesmo termos ido no domingo ao coisa de negro dançar o carimbó 🙂
Fecha-se o primeiro ciclo de imersivas em Belém com muitos pontos nodais, embriões de categorias e idéias a serem tornadas ações nos próximos encontros.
Inicia-se a etapa Santarém às margens do Rio Tapajós, onde nos encontramos com hacktivistas paraenses. É realmente inspirador ver tanta garotada difundindo, usando e desenvolvendo o linux. No Coletivo Puraqué conhecemos iniciativas de cinema, moeda social, oficinas de programação em computadores, encontros de gênero e tecnologia, tudo transmitido pela rádio Muiraquitã. À noite um cineclube mostrava em sua maior parte produções locais, mas também outros filmes com temáticas relacionadas como ciclovida que trata da apropriação das sementes originárias por empresas como Cargil, a mesma que tomou a praia do centro de Santarém para instalar seu ponto de escoação de soja para o mundo. Depois de um mergulho em Alter-do-chão, linda praia-ilha de água doce, mais um portal abriu-se, como colocou edu em sua fala: essa é a cidade do futuro – pequena, conectada, com natureza presente. O caminho aqui trilhado busca um envolvimento sustentável, a solidariedade digital e o compartilhamento de saberes.
Conversamos muito sobre mapas através de um trabalho já criado por eles dos infocentros e redes de net na cidade. Criamos à caneta um novo mapa, por cima deste, com as relações de conflito: porto da cargill, futura hidrelétrica rio do norte, descoberta do aquífero de alter-do-chão, expansão de áreas de periferia da cidade, rota aquática das drogas, áreas de prostituição, ocupações – vizualizando desde serviços públicos inexistentes aos recursos naturais extraídos de forma violenta (como a pedra descascada que surgiu para dar espaço à rota de aviões oriundos do aeroporto) – à desenhos mais subjetivos como o mapa dos cheiros.
Foi realmente impressionante participar de 2 conexões Belém-Santarém com tanta experiência a se somar – arte e tecnologia na amazônia – a ação em si já é um mapeamento, criando suas peças de encaixe, ligando-se por conexões físicas – observação, escuta, trânsitos, imersões, outras mais subjetivas como descobertas, vizinhança expandida, políticas, projetos hackeados. É evidente a força das práticas distribuídas.
Sítio .dev do trabalho
Rio – Belém – Santarém – Rio
brasil, 13 de agosto de 2011, calendário gregoriano
por Tati Wells
[1] http://www.labsurlab.co/ Artigo online sobre o encontro http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=695
[2] http://desvio.cc/sites/desvio.cc/files/hacknet/
[3] Compilação bruta & incompleta de idéias http://midiatatica.info/sur/dialogos_del_sur.pdf
[…] 23 http://efeefe.no-ip.org/livro/lpd/inovacao-tecnologias-livres-2 24 http://ubalab.org 25 http://baobavoador.noblogs.org/post/2011/08/17/hacklab-belem/ 26 http://hacklab.comumlab.org/wikka.php?wakka=MapaRelatoem10pontos […]
Mapa-relato em 10 pontos
1) O grande Caribe político:
Primeiros decênios do século XIX: corria à boca pequena entre negros e negras, índios e mulatos, escravos e pobres que trabalhavam no porto de Belém, os zumbidos da insurgência, revolta…. revolução. Entre panfletos clandestinos, rodas de cachaça e macumba, falava-se menos da tomada da prisão de Bastilha do que dos sangrentos conflitos na colônia francesa de São Domingo, uma pequena ilha do Caribe que por esta época abrigava a plantation de cana de açúcar mais lucrativa do Novo Mundo. O personagem mítico era menos o ilustrado Robespierre do que o escravo Toussaint Louverture, filho de negros capturados no Benin, que se fez liberto, organizou uma guerrilha clandestina, derrotou o exército de Napoleão e, nos primeiros anos do XIX, transformou São Domingo numa república independente, comandada por não-brancos, agora livres das amarras coloniais — o Haiti.
O poder da Revolução Haitiana estava não apenas em sua força transformadora local, mas em seu universalismo radical. Enquanto os Jacobinos declaravam que a “igualdade” era um direito universal, inalienável à todos os cidadãos, a idéia de cidadania era, em versão revolucionária francesa, algo restrito apenas aos brancos e aos homens. No Haiti a história foi diferente. Pois aqueles negros revolucionários eram, por assim dizer, “mais franceses que os franceses”, e radicalizaram a idéia de igualdade para qualquer e todo ser humano, independente de raça, sexo ou etnia: paradigma histórico do movimento abolicionista, marco inaugural dos modernos direitos humanos.
Na minha imaginação sobre o grande Caribe, pequeno mapa do mundo que estende-se de Nova Orleans até os contornos da Bahia, foram as ondas livres que chegavam do Haiti até o porto de Belém que mobilizaram as paixões dos Cabanos do Grão-Pará, que lá pela terceira década do XIX rebelaram-se contra tudo que era opressor: as reminiscências do poder despótico da colônia portuguesa, a falácia independentista brasileira, os business man de Londres e seus comparsas locais, os terratenientes do delta do Amazonas. E foi esta a memória, uma memória Amazonida-Cabana, que encontrei em muitos parceiros e parceiras durante nossa imersão em Belém. Não aquela memória que fala de um anti-colonialismo regionalista e doméstico, mais retórica que política, e no fundo, de pouco interesse, mas sim uma subjetividade política local, de-colonial, que fala da liberdade de homens e mulheres, de vários povos, etnias e raças: universalismo de origem Amazonida, Caribenha, Haitiana. Um projeto que foi massacrado pela contra-insurgência de Napoleão e pelas elites do Império de D. Pedro subservientes ao capital Inglês. Mas a memória resiste, como bem testemunhamos, e está no corpo, na comida, na palavra, no espaço e no batuque — de fato, o toque de três pontos do voodoo Haitiano (que também escuta-se em Nova Orleans) é semelhante ao tambor do Carimbó Paraense. “Chama o mestre Verequete” !
2) O Haiti é aqui (#1):
Depois do colapso político-ecológico da antiga colônia de São Domingo com o terremoto em 2010, começaram a aparecer cidadãos Haitianos nas fronteiras do Acre, adentrando as bordas da comarca pau-brasil em direção à antiga capital do caucho, metrópole Amazônica – Manaus. O grande Caribe é sobretudo um espaço de fluxos, trocas e tráfico: refugiados políticos do Haiti, mulheres transladadas à força para servirem na indústria do sexo, pasta de cocaína, electro-beats provindos de Miami, reggae Jamaicano. Celi Abdoral, da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos, navegou por estas e outras histórias durante sua apresentação no Parque dos Igarapés – “outro dia me ligaram de madrugada, peguei um avião às pressas até Rio Branco para resolver a situação dos clandestinos Haitianos”. Em conversa de canto, eu e Celi ponderávamos: se as forças militares brasileiras estão presentes no Haiti e, na verdade, são mais parte do problema do que da solução, porque o governo brasileiro recusa-se em dar asilo político aos refugiados quando emigrados ao “Império Brasil”? Lógica perversa que se assemelha ao poder branco ocidental europeu, que, em nome dos direitos humanos, joga bombas sobre a Líbia mas recusa-se em receber os mulçumanos na ilha de Lampedusa.
3) O Haiti é aqui (#2):
Quando Gilberto Gil canta “O Haiti é aqui” em levada de rap, o beat ressoa muito além da metáfora. O diplomata brasileiro Celso Amorin, hoje ministro das Forças Armadas, em entrevista à rede de televisão Al Jazeera, quando perguntado sobre as recentes ocupações militares dos morros cariocas, deu uma resposta precisa, que se bem me lembro, resumia-se na seguinte afirmação: “Só foi possível fazer a pacificação no Alemão porque temos know-how neste tipo de operação”. A referencia implícita ou explícita no termo “know-how”era, obviamente, a MINUSTAH — Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti –, que está sob o comando das forças armadas tupiniquins desde 2004. Não há como não desdobrar o paralelo apresentado pelo nosso mais destacado diplomata ao massivo processo de despejo que observamos nas favelas do Rio de Janeiro atualmente (ver apresentação de Tati Wells): continuação do “processo de paz” em prol da nova economia bolha-Brasil dos grandes eventos globais. O irônico é que, como nos contou Celi Abdoral, este know-how já havia sido testado – choque-se ! – durante a organização do Fórum Social Mundial em 2009, em pleno delta do Amazonas, quando em preparação para a realização do evento de onde se quer anunciar que “outro mundo é possível” , uma série de detenções arbitrárias – ou o que Celi chamou de “limpeza étnica” – foram realizadas nas periferias da capital do Grão-Pará. As ambições do novo esquema Brasil Império a um acento no Conselho de Segurança da ONU devem desencadear mais um ciclo de repressão ao movimento Cabano… para inglês ver, of course.
4) Belém (#1 – impressões vagas, provavelmente imprecisas, entre conversas esparsas)
Arranha-céus pós-modernos esvaziados: muito vidro e ar-conditioning. Lavagem de grana via produção do espaço urbano desprovido de uso social, periferia em expansão, pirataria estrutural e muita pasta-química e violência policial para manter o povo em estado de confinamento. E a elite do Grão-Pará permanece no comando das terras férteis de Marajó.
5) Belém (#2):
Nada como chegar ou partir do aeroporto de Belém durante o dia, sobrevoar a cidade, e ver os rios, canais de água e o mato fundo.
6) Economia-política do enclave (Santarém):
Ao lado de Santarém existe Fordlandia – antiga plantation industrial de borracha, cidade moderna incrustada nas margens do Tapajós, que operava como um enclave extrativista dentro da cadeia global fordista. Hoje “abandonada”, resta-nos a memória, que espelha-se do outro lado do Atlântico, na África, onde o Sr. Firestone fundou Harbel, cidade gêmea de Fordlandia, mas que ao contrário de sua irmã brasileira, vingou gente grande, e até hoje perpetua o esquema neo-colonial plantation na Libéria (não vou nem enumerar a série de violações de direitos humanos registrados por aí…). O Haiti é aqui porque antes de ser Haiti, como nossa comarca, era África, e todos nós fomos colocados numa posição subalterna dentro da divisão territorial do trabalho: produzir commodities, eternas fontes de acumulação primitiva no esquema mercado-mundo, destinados a se perpetuar como exportadores de matéria prima e consumidores de tecnologia. Outrora exportávamos o caucho para produzir os pneus Firestones que equipavam os carros da Ford Motors que, depois, importávamos. Hoje minérios, seja das minas do complexo Trombetas ou Carajás, que equipam os tablets, lap-tops e smart-phones que retornam via nossos im-portos, ou os one-lap-top-per-child doados pelas grandes potências ou magnatas filantrópicos e respectivos programas de inclusão digital.
(questão: como pensar inclusão digital dentro de um esquema que considere a divisão global da produção de tecnologia? )
(questão: pensando com Felipe Fonseca: por uma cartografia materialista das digito-técnicas, mapeando todos os materiais que compõe os circuitos eletrônicos, placas e memory-cards de nossos computadores e seus respectivos – e prováveis – lugares de produção: ouro, por exemplo, vem da Amazônia Peruana ou das minas do Congo? Lítio e as novas minas da Bolívia? terras-raras e trabalho forçado na China ou as novas fronteiras minerais no Afeganistão? O que tal mapa nos contaria sobre nossos gadgets eletrônicos e a ruptura da divisão digital global? )
E claro, soja, exportamos muita soja para criar as divisas de nosso projeto bolha-Brasil. Ao lado de Fordlandia, está Belterra, cidade similar que Henry Ford mandou construir alguns kms ao norte, quando percebeu que as coisas iam dar com os burros n’água em sua primeira utopia industrial-disciplinar no coração da Amazônia. Getúlio Vargas visitou a cidade e ali encontrou um esquema econômico-espacial adequado ao seu projeto nacional-desenvolvimentista que, posteriormente, e guardadas devidas ressalvas, foi adotado inúmeras vezes no território Amazônico, ao ponto de, não acredito ser exagero afirmar, este esquema “enclave”, já presente em Fordlandia, ter constituído um esboço de projeto (econômico, territorial e, no limite, ideológico) no qual está fundamentado uma série de programas subseqüentes que foram implementados na região. Que nos diga Lúcio Flávio Pinto, ou então, veja-se: Vila Serra do Navio (manganês), Jarí (celulose), Carajás (minério), e por ai vai…
Hoje, Belterra, na sua paisagem sonolenta à americana, em seu bucolismo rural, oculta a reificação desta vocação histórica que foi (forçosamente) destinada à Amazônia: já não mais cercada por plantations de haveas brasiliense, mas por mono-cultivos de soja. Santarém é o nó terminal deste sistema produtivo de bio-massa, verdadeiro enclave global de uma cadeia produtiva em escala mundo, cujo registro na paisagem são os terminais da transnacional Cargill junto ao velho e elegante porto, no final da BR 163. Não se trata de mera coincidência o fato desta pequena cidade Amazônica ser um local dotado de infra-estruturas de comunicação avançadas, regadas a fibra ótica e sistemas logísticos que devem operar em ritmo global – enclave territorial e digital.
Mas se Fordlandia foi um esboço-modelo, há que se relembrar sua história de maneira integral, e daí tirar alguma lição: em 1930, trabalhadores rebelaram-se contra a dura disciplina imposta pelos técnicos da indústria, tocaram fogo nos galpões e destruíram o relógio que marcava o ritmo da fábrica. E jogaram um carro para afundar no Tapajós.
Protestos em Fordlandia, circa 1930: um carro Ford jogado às margens do Tapajós.
7) Urbanização à Brasileira
A história de Fordlandia nos conta que, ao lado da cidade projetada, armou-se uma favela, na outra margem do Tapajós. Ali ficavam os bares, os bordéis, terreiros, as casas de jogos e de outros pecados, e toda a sorte de atividades que fazem parte da vida de qualquer cidade digna de ter o nome de cidade, mas que não cabiam no enclave-disciplinar imposto pelo esquema capitalista-puritano Fordista. E a história se repete: em Santarém, quando nos debruçamos sobre a cartografia da cidade com o pessoal do coletivo Puraqué, aprendemos que a grande periferia desta cidade cresceu durante a mesma época em que a Cargill e a economia da soja fortificava-se na região. História que nos é conhecida e que se repete em cada canto de nossa comarca pau-brasil, para não dizer em cada canto de nossa sub-América: o grande capital compra os pequenos sítios dos camponeses a preço de banana, formando novas plantations em grandes latifúndios. Elimina-se a produção de alimentos locais, e os camponeses e colonos, aqui também os índios, antes ricos mas agora pobres, tornados sem terra, migram para a periferia das cidades, amontoando-se em bairros marginais desprovidos de água, energia elétrica e de tudo aquilo que o urbano deve oferecer. No mesmo dia em que chegamos em Santarém, um punhado de gente ocupava uma área ao longo da avenida Fernando Guilhon. Aprendemos que, em troca de votos, políticos locais aceitam e legitimam ocupações semelhantes, e, ao mesmo tempo, liberam as áreas nobres à beira das praias para que os executivos das trans-nacionais que operam na região construam suas mansões no Caribe Amazônia.
Ciclo perverso e recorrente que virou praticamente um padrão de cidade: urbanização à brasileira.
7) Vivo
Uma das coisas que mais impressiona na área de Santarém é a capacidade conectivo-digital implementada na cidade. Duas camadas parecem estar em operação: 1) dado a vocação de terminal global do circuito soja, parece lógico que o enclave-Santarém necessite de estrutura de comunicação e logística adequado ao tempo mundo ao qual está submetido (ver Milton Santos); 2) uma série de empreitadas voltadas à projetos de inclusão digital e práticas com novas mídias pipocam aqui e acolá.
Grande parte deste investimento é capitaneado pela Vivo, conglomerado trans-nacional que desde 2010 é operado majoritariamente pela espanhola Telefônica. Aprendemos sobre um projeto que a companhia financia nas comunidades ribeirinhas do Tapajós: desenhou uma rede 3G na área e, para cada comunidade, oferece um smart-phone com 150 contos de crédito ao mês. Também aprendemos sobre 500 computadores que foram doados para uma área da cidade que mal conta com energia elétrica. E claro, aprendemos sobre nosso próprio papel dentro deste esquema, dado que nosso encontro é parte do que parece ser um programa de investimento gigante – tanto “pedagógico”, quanto infra-estrutural, quanto de kapital – que a Vivo está implementando na região norte do Brasil.
O que se anuncia, dado tal panorama, no meu entender é o seguinte: incluir digitalmente é preparar novos mercados de consumo ou sub-verter a própria lógica consumista no sistema new-media? Fio da navalha. Pode a ética hacker hackear o grande mecanismo coorporativo-estatal e manter certa autonomia política, apontando para novos futuros?
… o Puraqué nos diz que sim.
(é preciso sempre pensar o pensamento e re-pensar a prática a cada rotação do planeta, à la chefe Mao).
8) 1989
“Quando o homem branco aqui chegou
Trazendo a cruel destruição
A felicidade sucumbiu
Em nome da civilização
Mas mãe natureza
Revoltada com a invasão
Os seus camaleões guerreiros
Com seus raios justiceiros
Os caraíbas expulsarão”
1983 – Como Era Verde o Meu Xingu
“Mamãe eu quero Manaus
Muamba, Zona Franca e Carnaval”
1984 – Mamãe eu quero Manaus
“E a oca virou taba
A taba virou metrópole
Eis aqui e grande Tupinicópolis”
1987 – Tupinicópolis
Verdadeiro patrimônio imaterial da memória Cabana é o hardware de Arthur Leandro, que entoava a trilogia Amazônica da Mocidade Independente de Padre Miguel dos anos 80 enquanto conversávamos na orla de Santarém. Ao que Gisele Vasconcelos emendava — “o pós-tropicalismo é samba enredo” — e isso não sai da minha cabeça. Porque para quem é filho da década de 80 — ou da “década perdida” — como eu e tantos amigos, a memória dos anos 80 é algo a se refazer. Em 1989 a Rede Globo mostrava a novela “Vale Tudo”, anunciada por gritos estridentes da Gal Costa cantando Cazuza – “meu cartão de crédito é uma navalha”. A Inflação era rampante. Em 1989 Joãozinho Trinta entrou na Sapucaí com um Cristo Redentor coberto com uma manta negra — porque a imagem de Cristo havia sido censurada pela justiça — rodeado de mendigos, que carregavam todo o lixo – urubus e ratos – para fazer deles luxo, e a faixa sobre o peito de Jesus dizia: “mesmo censurado, orai por nós”. Os anos 80 foram um momento de abertura (lembrar Glauber Rocha) política e subjetiva, e a censura à Joãozinho era uma espécie de vestígio funesto do esquema militar-ditadura que, oxalá, iria sucumbir. Não foi o caso. Depois veio o esquema “combate aos marajás” e muita lambada tipo exportação, e o samba-enredo acabou que, em muitos lados, virou um negócio meio marketing. Só agora, após a ressaca neo-liberal e certa inversão das regras (em escala Latino Americana) é que parece ser possível repensar a abertura político-subjetiva que ali se anunciava, e talvez re-considerar seu legado histórico. E portanto retomar Glauber, Joãozinho e a trilogia entoada por Arthur, que ao mesmo tempo que cantava a destruição da Amazônia, anunciava a revolta da “mãe natureza” – Pachamama – e a expulsão dos invasores. Isto é, cantava o colapso do esquema militar-desenvolvimentista no qual foi baseado a ocupação da Amazônia durante o regime militar até a “Nova República” e que, infelizmente, apesar do potencial, deu no que deu: continuidade-transitória para a era Collor, como outrora fora com a nossa independência feita pelo filho do Rei.
Os anos 80 foram paradigmáticos não apenas porque testemunhamos a ordem bi-polar da Guerra Fria desabar, mas porque novos atores apareceram em cena. Entre eles, e com toda a força como canta o samba, a Amazônia. Chico Mendes morreu assassinado em 1988, e em 1989 os índios Kayapó convocaram os engenheiros da Eletronorte e os representantes do governo Brasileiro para o Encontro de Altamira, e nesta ocasião, conseguiram suspender um empréstimo do FMI e bloquear o projeto da hidrelétrica Kararaô na Curva Grande do Xingu, projeto este que hoje o governo Lula-Dilma tenta retomar, agora com outro nome, Belo Monte. E o paradoxo se recoloca na encruzilhada Amazônia-Brasil. Mas os tempos não são mais os mesmos, pois memória que toca em samba é memória viva, e eis que a grande Tupinicópolis, nascida por volta desta mesma data, já não se curva mais tão facilmente. Chama Verequete.
9) Hackers e Peixes elétricos: Puraqué
Santarém é a Tupinicópolis.
Logo na chegada, enquanto a rádio Muiraquitã estava sendo armada, Marcelo do Puraqué contava-nos: “montamos o transmissor em Itaituba, aí colaram os federais para sondar o que estava acontecendo. Nós falamos que aquilo ali era um experimento, que estávamos estudando tecnologia”, algo assim, se bem me lembro. De fato, o que se aprende por ali no Puraqué — o que eu aprendi — e o que se produz ali, é tecnologia e conhecimento. Durante muito tempo a idéia hegemônica sobre a Amazônia era de que a floresta constituía um espaço “primitivo”, tecnologicamente atrasado, e que, portanto, era preciso levar o desenvolvimento até lá, penetrar seus rios e igarapés com novas tecnologias via nossos im-portos.
Uma imagem, por exemplo, circulada na Revista Manchete de 1972, auge do regime militar e de seu projeto tecno-destrutivo para a floresta: um caminhão da IBM cruzando a Transamazônica anuncia uma mensagem clara: estamos penetrando os confins da floresta com as mais novas e desenvolvidas tecnologias. Hoje esse papo para boi dormir já não cola mais. Não cola porque, aprendemos que é da Amazônia que se origina um tipo de tecnologia não-branca que, mais do que nossos formidáveis computadores, tornou-se essencial para nosso futuro – tecnologia arraigada em saberes ancestrais, memória coletiva que sustenta uma espécie de “política do comum” – ou, política do commons, como queiram. Tal política, para qual o termo sustentabilidade é um referencial muito raso, fundamenta-se na estratégia de desejar apenas o que é suficiente – e não a abundancia insaciável do fetiche-mercadoria -, na construção cotidiana do que é coletivo — e não da propriedade privada e do individuo — no sumak kawsay, estética-política do bem viver.
O potencial, a meu ver – a lição que carrego desta imersão — é que o coletivo Puraqué desdobra o que é conhecimento via modo de vida e saber tradicional com uma pegada rigorosa para as novas tecnologias. Verdadeira ecologia do futuro que mistura o digital e a terra, o saber primeiro e o os mais luminosos equipamentos da micro-eletrônica, o virtual e o material, como elementos contemporâneos e em simbiose. Ecologia semiótica, midiática, social e ambiental. Política é prática.
10) Pedagogia Crítica / Cartografia Política:
Gisele Vasconselos me contava o porque tinha voltado para Boal, ao Teatro do Oprimido, como ponto de referência para que pudesse pensar novas articulações entre grupos, coletivos e pessoas no sistema arte-midia-tecnologia. Dois pontos: a idéia de democratização, via coletivização da performance; a idéia de transformação, via tomada de consciência através da performance coletiva. (e Boal articula, lembre-se, no contra-corrente da ditadura, e, em certo sentido, como resultado dela, tal como emerge o sentido Amazônico no encontro de Altamira em 1989 ou com Chico Mendes no Acre).
Me parece então que, pensando em mapas, a questão que nos cabe é: como trabalhar a ponte entre Paulo Freire, Augusto Boal e uma emergente cartografia política? Uma cartografia que inclua, necessariamente, uma dimensão pedagógica, pois só se conhece o território cartografando-o. E logo, a cartografia deve ser, por definição, uma prática:
1. a ser democratizada (conversa com Pablo de Soto);
2. a tornar-se comum, permitindo uma espécie de tomada de consciência coletiva sobre o território, e portanto, transformadora.
Pois mapas não são representações imagéticas de um território real, mas instrumentos de criação de territórios que trazem consigo projeções de espaço futuros e abrem caminho para intervenções no presente. Durante os anos 90 e lá vai cacetada, a ideologia liberal do livre fluxo de informações, sustentada pela NASDAQ, ficava nos dizendo que internet era coisa de “não-lugar”, presença virtual, todos em tudo quanto é canto e ao mesmo tempo em canto nenhum, desterritorialização e o escambau. Me parece que a questão política mais urgente, em se tratando de cartografia, seja reverter este discurso e fazer o mapa do acesso em dupla camada: acesso ao mundo das redes virtuais e do compartilhamento, e, do outro lado, acesso à cidade, direito ao ambiente e ao urbano – cidade como mídia – espaço comum.
Paulo Tavares, Ago. 2011
PS: Em minhas incursões pela Amazônia sempre encontro alguma mulher cuja força me impressiona e inspira. Dois anos atrás foi Antônia Melo, liderança do movimento de defesa do Xingu, em Altamira. Este ano Dona Graça Gama, memória política Amazonida, em Santarém, a quem deixo um agradecimento pelo papo e dedico estas linhas tortas. Longas conversas, muito aprendizado, para sempre lembrar que a natureza-Amazônia é Pachamama-mulher: contra a falocracia do desenvolvimentismo macho-branco.
fonte: http://hacklab.comumlab.org/wikka.php?wakka=MapaRelatoem10pontos