Ancestralmente incorporando estrelas e espíritos, retratava espaços em traços, culturas em movimentos, pura arte e intuição. Numa língua estranha chamou-se Cosmografia, sendo determinante nas navegações coloniais, quando houve o choque. São invariáveis as relações de poder globais constituidas através dos traçados. E recente, incorporadas às máquinas-deusas, georeferenciadas por satélites comerciais, militares.
Na definição da ONU de 1949 – o mesmo ano da criação da OTAN (Organização do tratado do atlântico norte que buscava uma defesa coletiva de seus países membros, atônitos com a bomba atômica russa): “Cartografia – no sentido lato da palavra não é apenas uma das ferramentas básicas do desenvolvimento, mas é a primeira ferramenta a ser usada antes que outras ferramentas possam ser postas em trabalho.” [1] Reconhecer, retratar, traçar rotas conjuntas, a arte da informação, transmuta-se em subjugar, re-escritura de nomes e significados, cerceamento, a guerra da informação – “mapear territórios e recursos a serem posteriormente explorados pelos que detém as ferramentas e técnicas de produção de riqueza (…) garantindo formas de dominação de uma sociedade sobre a outra”.[2] Em nome do desenvolvimento e sua adição por petróleo, patrimônios territoriais e patentes culturais, metais, árvores, grãos e carne, esportes e turismo predatório, se dá o des-envolvimento com o ser vivo. Micro-guerras em todo o lugar. O mapa como ponto de partida.
Cartografias Críticas, usadas como tática política de engenharia reversa no sistema e na própria idéia de geografia, propõem uma descolonização de saberes, um resgate de territórios e memórias paralelos à visualização das lutas vivas locais, unindo-as sob novas vizinhanças globais, num outro exercício de poder. É também um transbordamento do movimento da Geografia Crítica nos anos 70 com a difusão do livro “Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.” de Yves Lacoste[3], de 1976 , fundindo-se definitivamente aos movimentos sociais, e adquirindo outros nomes como Geografia Radical, onde destaca-se para nós e para toda a América ancestral, o pensamento de Milton Santos[4], com a re-emergência da vivência na prática cartográfica. É interessante notar, que é também do mesmo ano de 76 a Declaração de Bogotá ao direito internacional ao espaço.[5]
Em exemplos mais recentes observa-se uma incorporação de ferramentas híbridas como as ruas, Internet, os mapas georeferenciados e os softwares livres. São os Mapeios Coletivos de grupos como Iconoclasistas, Beehive Collective, intervenções públicas nas praças, na Net e em vídeo cartografias dos Antena Mutante e Hackitetura ou Mapas para o Fora – infográfico das conexões entre projetos de arte em rede, seus patrocinadores e desdobramentos, mais recente a Deriva Maravilha, que aconteceu na abertura do Laboratório de Cartografias Insurgentes. Ou os mapas afetivos produzidos dentro da comunidade expandida Fronteiras Imaginárias Culturais . Experiências cartográficas que vão desde o campo da arte às organizações não governamentais, movimentos sociais e grupos libertários, uma ferramenta de luta comum e ao mesmo tempo múltipla e em disputa.[6] A comunicação cartográfica insere xs leitorxs de mapas na interpretação da mensagem e criação de novos mapas, e isso é particularmente interessante aos que sofrem as consequências diretas do processo de espacialização territorial de confrontos, como aqueles que sofrem por exemplo, pela geografia e arquitetura orientada aos megaeventos.
No lado oposto do front o Movimento de Ocupações urbanas e as favelas, territórios ocupados há décadas por moradores de baixa renda do Rio de Janeiro, que agora sofrem a perda de suas casas, de forma autoritária, sem consulta ou opção concreta de moradia plena, simplesmente removidos, fazendo-xs ir para periferias cada vez mais distantes, condições de habitação cada vez mais precárias, cortando todos os laços familiares adquiridos em seus territórios de origem, quando chegaram há 30, 50, mais de 80, e até 100 anos (como Arroio-Pavuna). Mais que direito à moradia contestamos direito aos territórios, à memória e à cultura tradicional, tudo aquilo que foi colocado de lado com os mapas conspiratórios “ao Des-envolvimento”.
Já em 1937 tinha sido proposta a eliminação completa das comunidades carentes, vistas como aberrações, foco de marginalidade e relacionadas à falta de higiene. Nos anos 60 surgem as políticas de remoções e o plano de des-favelização da zona sul. “Entre 1960 e 64, o governador Carlos Lacerda defendeu uma reformulação completa da política habitacional no Estado do Rio. Seu objetivo era levar os pobres para a periferia, nos mesmos moldes do que acontecia nas principais cidades da Europa e Estados Unidos. Foi durante seu governo que foram construídas a Vila Kennedy, em Senador Camará, a Vila Aliança, em Bangu, e a Vila Esperança, em Vigário Geral, além da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, que sozinha recebeu moradores de 63 favelas extintas. A criação dos conjuntos habitacionais fazia parte do Plano de Habitação Popular, amplamente financiado pelo governo americano (estadunidense) através da Aliança para o Progresso.”[7]
Recentemente, a partir do novo governo do estado e da prefeitura, ano de 2009, uma nova onda de reassentamentos urbanos forçados – desapropriações – atinge seu pico máximo, para além das justificativas ambientais e de segurança. Como no caso da Estradinha no Morro do Tabajaras entre Copacabana e Botafogo quando ficou provado por um contra-laudo popular que 80% da área considerada “de risco” pela prefeitura do rio de janeiro era perfeitamente habitável sendo a única área comprovadamente ameaçada justamente a escolhida para abrigar a nova UPP.
mapa mostrando a pequena área de risco no tabajaras (em vermelho)
Ali encontramos um verdadeiro cenário de guerra, deixando claro os verdadeiros interesses da prefeitura do rio de janeiro e o capital especulativo da vizinha Santa Casa (Cemitério São João Batista) onde o metro quadrado é avaliado em r$300.000. Casas inteiras ao lado e atrás de casas parcialmente destruídas, crianças brincando nos escombros, tratores estacionados, UPPs ocupando a única área de lazer infantil. Antigas casas que por serem geminadas (vizinhas de parede) encontram-se expostas como cicatrizes permanentes das vítimas da guerra. Uma inteira outra demolida, campo minado. Na justiça para a retirada do entulhos, estes sim causando risco à saúde, é paga pelo estado (a quem?) uma multa de r$50 mil/dia. Enquanto isso aos moradores resta conviver com mais essa injustiça. E isso não vai passar na TV.
Com o advento dos megaeventos de entretenimento globais, mais especificamente a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, e também a Rio+20 no ano que vem, a cidade toda está entretida em seu re-desenho, projetos britânicos of course, em obras faraônicas como implosão de viadutos, super-museus, super-avenidas, trens-bala, polícias-pacificadoras, e para tanto segue em frente com as remoções de comunidades, pixações de casas, demolições na calada da noite, ZERO dias de notificação, infiltração de padres e pastores nos territórios ocupados, e milícias naqueles para os quais são “transportados”, seus móveis em caminhões de lixo. Uma guerra de baixa intensidade instaurou-se com legalidades e ilegalidades perenes, como o fazem governos, máfias e corporações.
É em nome desses eventos esportivos para o fora, neo-colonizantes, ou catastróficos, pós-colonizantes, que estão sendo construídos parques, áreas de lazer, corredores viários, estacionamentos, museus, legalizando a forçosa expropriação de propriedades ocupadas de forma autônoma por grupos de indivíduos já excluídos da possibilidade de moradia plena, moradores de áreas uma vez abandonadas da cidade, e que com seu adensamento e idéia atomizada de futuro cresce como uma vertiginosa estética, cidades maquiadas de muros e vendidas como infopornografia – através de câmeras pode-se acompanhar real time as obras. Adicionada à forma bruta com que revela-se a violência institucionalizada cotidiana que destrói lares, vivendo agora sua quarta guerra mundial, como preconizada pelos Zapatistas[8], uma guerra civil de nossos governantes contra a população pobre, nós mesmxs. Aqueles que documentam os novos processos de reconfiguração da cidade, furando o bloqueio da mídia-sócia carioca, são os novos geográfos da pobreza, o outro lado da geografia crítica da riqueza oficiosa – Pela Moradia, Conselho Popular, Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, Movimento Nacional de Luta por Moradia, a Segunda Cidade, Contador de Despejos, Rio 40 Caos, Jornal A Nova Democracia, Latuff.[9]
São muitas as práticas fascistas a contrapor, visibilizar a chegada de técnicos avaliando imóveis sem mais explicações sobre o que viria e meses depois a remoção de famílias na calada da noite, assinatura de papéis posteriormente usados como comprovante de venda de casas, negociações individualizadas; invasões policiais sem mandato, terrorismo psicológico; pelo menos 11 condomínios onde foram instauradas o programa Minha Casa minha Vida tomados por milícias, há relatos de roubos, de pessoas que perderam seus empregos porque passaram a morar em lugares distantes, onde um mercado fica há uma hora de caminhada.[10] É a barbárie generalizada. Estas são informações oriundas das próprias comunidades, que ao encontrar um estado fascista, uma defensoria pública incapaz de atender a tantos pedidos, assim como uma imprensa conivente, tem poucas chances de terem suas vozes ouvidas. Exclusivamente pela Internet lemos e vemos relatos dessas vivências traumáticas de famílias. Estão retirando os cidadãos de suas casas, pessoas nascidas e criadas nestes lugares, para “dar uma chance” de moradia “digna” através de seu endividamento, quando lhe é ofertada essa oportunidade, sob o falso mote da “oportunidade da casa própria”. O que vemos realmente é muitxs moradorxs tendo que alugar casas quando já habitavam moradias próprias, precarizando ainda mais a sua já tão vulnerável situação social. O dízimo já compartilhado com as igrejas na esperança de um lugar ao céu, agora é somado ao dízimo de um lugar à terra.
Engendra-se com os novos planos arquitetônicos todo um capitalismo verde, a questão ambiental sobrepõe-se à todas as outras justificativas imaginadas pela dominação. São marcadas em papéis, sem diálogo ou consulta “áreas de risco” ou simplesnte “áreas de interesse social”. Os consórcios empresa-estado garantem por um lado a falta de transparência dos dados referentes às áreas demarcadas como “própria à moradia estatal”, e por outro permitem arbitrariedades como a demora na retirada de entulhos – o caso da Estradinha que passa atualmente por uma campanha de reconstrução, um caso de sucesso frente a tantas outras derrotas como o sumiço de Vila Harmonia. Quem lucra é claro são as empresas aptas a disputar o consórcio, ou seja, as aliadas aos estados e municípios – velhas conhecidas como Odebrecht, Delta – certamente garantido propinas à hierarquia política estatal, tradicionalmente corrupta. Indenizações de casas na Barra da Tijuca por r$4500, enquanto milhões são gastos nos novos estádios e parques.
Em tempos de megaeventos e microguerras se faz necessário produzir novos mapas, resistir, enquanto aos cariocas resta o líquido tracejar de mais uma itinerância, lágrimas e bits. Esse é um manifesto, enfim, pelo direito de re-existir, re-territorializar nossos sujeitos, territórios e redes de afeto. Um grito por uma nova cartografia.
Coletivo Baobá Voador
Notas:
[1] “Modern cartography – base maps for worlds needs”. Onu, Departamento de Afazeres Sociais. Fonte: http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/cartografia/manual_nocoes/introducao.html Acesso em setembro de 2011.
[2] “A cartografia no ensino fundamental: construindo o espaço social a partir da percepção do aluno”. De Catarina Maria dos Santos . Artigo disponível para download em http://www.faete.edu.br/revista/artigo%20catarina.pdf Acesso em setembro de 2011.
[3] “Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.” De Yves Lacoste, disponível para download em http://dc202.4shared.com/download/batyeqpi/a_geografia_isso_serve_em_prim.pdf?tsid=20110924-134133-e7cbcffc Acesso em setembro de 2011.
[4] “Por uma outra globalização”. De Milton Santos. Livro disponível para download em http://search.4shared.com/search.html?searchmode=2&searchname=por+uma+outra+globaliza%c3%a7%c3%a3o+milton+santos Acesso em setembro de 2011.
[5] “Las frecuencias, las soluciones, los países/ la existencia de su soberanía, de sus pueblos / un futuro próximo /una saturación de tu. Esta órbita, de sus pueblos / los países, los países / que las frecuencias y son recursos / las frecuencias de mi corazon. En el pueblo satelito, la frequencia stacionaria /sincrónica, Esta órbita, de sus pueblos / los países, los países. / que las frecuencias y son recursos / las frecuencias de mi corazon. En el pueblo satelito, la frequencia stacionaria /sincrónica /podemos ver tanto.” Declaração da primeira reunião de países ecuatoriais (dezembro de 1976). Firmado por Brasil, Colômbia, Congo, ecuador, Indonésia, Quência, Uganda e Zaire. “Declaração de Bogotá – El Derecho Internacional del Espacio”, para a leitura em http://dorkbot.org/dorkbot-wiki_as_html/DorkbotMdeWiki%282f%29DeclaracionBogota%282f%29SpanishVersion.html Acesso em setembro de 2011.
[6] Muitas dessas práticas viemos a conhecer no Laboratório de Cartografias Insurgentes, destaque para a Deriva Maravilha http://cartografiasinsurgentes.midiatatica.info que aconteceu no Rio de Janeiro, em setembro de 2011. Outros exemplos: Iconoclasistas (Argentina ) http://iconoclasistas.com.ar, Antena Mutante (Colômbia) http://antenamutante.net, Hackitectura (Espanha) http://hackitectura.net/blog, Mapas para o Fora http://publicacoes.midiatatica.info/cartografia.zip e Fronteiras Imaginárias Culturais http://fronteirasimaginarias.org e MSST – Movimento dos sem Satélite http://devolts.org/msst/ (Brasil). Assim como uma infinidade de contra-mapas que foram colecionados em referências aqui http://cartografiasinsurgentes.wordpress.com/referencias/ Acesso em setembro de 2011.
[7] http://www.favelatemmemoria.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=21&infoid=8&sid=7 Acesso em setembro de 2011.
[8] http://flordapalavra.noblogs.org/post/2011/03/26/nem-o-centro-nem-a-periferia/ Nem o Centro Nem a periferia – Sobre Cores, Calendários e Geografia. Subcomandante Insurgente Marcos EZLN
[9] Pela Moradia http://pelamoradia.wordpress.com, Conselho Popular http://conselhopopular.wordpress.com, Comitê Popular da Copa e Olimpíadas http://comitepopulario.wordpress.com, Movimento Nacional de Luta por Moradia http://mnlmsm.blogspot.com/, a Segunda Cidade http://asegundacidade.blogspot.com/, Contador de Despejos http://contadordedespejos.kit.net, Rio 40 Caos http://rio40caos.com/, Jornal A Nova Democracia http://www.youtube.com/user/patrickgranja, Olimpi(c)Leaks http://olimpicleaks.midiatatica.info/, sempre Latuff http://twitpic.com/photos/CarlosLatuff, http://tales-of-iraq-war.blogspot.com/, http://latuff.blogspot.com/. Acesso em setembro de 2011.
[10] Vídeos sobre a questão das remoções no Rio de Janeiro podem ser encontrados em sua maior parte na Internet como “Realengo, aquele desabafo” http://pelamoradia.wordpress.com/2011/05/30/video-mostra-dificuldades-dos-moradores-realocados-pela-prefeitura-no-rio-rj/ Ou vídeo de remoções que aconteceram na região de Campinho http://pelamoradia.wordpress.com/2011/05/27/urgente-despejo-em-campinhos/ e outros vídeos como Vozes da Missão http://pelamoradia.wordpress.com/2011/06/20/video-serie-vozes-da-missao-relata-impactos-dos-megaeventos-em-quatro-comunidades-do-rio-rj/
. Acesso em setembro de 2011.
[…] WELLS, T. Megaeventos x Microguerras : Colonialismo 2.0 – Por Novos mapas. […]
http://www.nmartproject.net/netex/?p=3616#more-3616